A Vida dos Livros

“Saramago – Os Seus Nomes – Um Álbum Biográfico”

O livro, edição de Alejandro Garcia Schnetzer e Ricardo Viel (Porto Editora, 2022) reconstitui no ano do centenário o percurso do romancista, a partir das referências fundamentais.

DÁ VONTADE DE PERGUNTAR: PORQUÊ?
“Da história de Portugal sempre nos dá vontade de perguntar: porquê? Da cultura portuguesa: para quê? De Portugal, ele próprio, para quando? Ou: até quando? Se estas interrogações não são gratuitas, se, pelo contrário, exprimem, como creio, um sentimento de perplexidade nacional, então os nossos problemas são muito sérios”. Na obra de Saramago não há indiferença perante qualquer destes temas. Para todas as interrogações o escritor procura pistas. E assim a sua obra corresponde a um percurso cultural e humano que merece, na sua complexidade, atenção, sobretudo pela diversidade criadora que pressupõe um constante enriquecimento da cultura, da literatura e da língua. Quando o escritor salienta que Almeida Garrett em “Viagens na Minha Terra” e Almada Negreiros em “Nome de Guerra” constituem casos especiais na inovação e renovação da língua portuguesa, que enriqueceram o que encontramos nas várias culturas e línguas que, a partir do português, se difundiram e difundem no mundo global, permite-nos ler a sua obra multifacetada à luz de uma preocupação emancipadora, em ligação à língua e à sociedade como realidades vivas. Saramago chega mesmo no “Ano da Morte” a lamentar que Alberto Caeiro não tenha vivido o suficiente para conhecer o contributo extraordinário de Almada Negreiros. Aliás, a “Viagem a Portugal” é um modo atual e necessário de ver o País, a partir da realidade das gentes concretas, do país profundo, na senda de Garrett e de Raul Proença. E na obra de Saramago está também um complemento, com naturalidade e originalidade, da obra do romancista, de “Levantado do Chão”, de “Memorial do Convento” ou de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.  E se a sombra de Garrett e de Almada está bem presente, o certo é que há uma evolução, que permite compreender Portugal como realidade em confronto permanente entre o presente e o passado. 

LIBERTAÇÃO DA LITERATURA
E assim a literatura liberta-se. Como? Colocando-se do lado da vida e assumindo a incerteza histórica, mais do que qualquer cânon ou receita. O sucesso da obra de José Saramago não se deve, assim, a uma predisposição previsível, mas a uma exigente procura de algo que possa mobilizar o leitor, não pelo que seria esperável, mas como demanda e descoberta da própria humanidade de um povo heterogéneo, mas com raízes unificadoras. Nesse ponto encontramos a cultura, como Cícero lhe chamou “humanitas”, como algo que define a essência da vida. Assim a libertação da literatura não é separação da realidade, mas compreensão do ato criador, que não pode ceder à repetição ou à previsibilidade, porque a vida se contrapõe a essa ideia. Lembre-se o que Saramago diz de “Levantado do Chão”. “Era uma questão que eu tinha que resolver e que tinha que ver com a minha própria vida, com o lugar onde nasci, eu não nasci no Alentejo, mutatis mutandis, a história é a mesma. Assim como se eu tivesse que agarrar aquela gente, que foram os meus avós, os meus pais, os meus tios, essa gente toda, analfabetos e ignorantes, e tivesse que escrever um livro”.  E nesse “agarrar” da gente”, encontramos uma dupla aceção: compreender a realidade descrita e mobilizar os leitores para acompanharem a narrativa, como uma relação biunívoca. Também a criança que ouve uma história vive as peripécias da mesma e sente-se ao mesmo tempo como protagonista e destinatária.  É o tecido humano que importa, ou seja, o movimento que mobiliza a um tempo a atenção e a iniciativa. Há, pois, na obra de Saramago, uma persistente procura da heterogeneidade da existência: pensamento e ação, vontade e inércia. E assim a obra vai sofrendo alterações no texto e no contexto, na tónica e na temática. “Mafra é um pouco como as nossas pirâmides do Egito. Andaram a trabalhar nas suas obras 400 mil pessoas. Como é que uma massa de gente construiu uma massa como esta?”. A emancipação humana liga-se à emancipação da cultura. E se Almada Negreiros e Fernando Pessoa acompanham a viagem terminal de Ricardo Reis, é o Padre António Vieira, e os ecos do pregador barroco, que acompanham Baltazar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, apesar da distância temporal. E a capacidade de adivinhar e de ver por dentro é, no fundo, a invocação da tarefa do escritor de poder ver para além de todas as aparências. E a dureza da existência e da exploração humana, ao longo de milénios, encontra na exigência do sonho o caminho para encontrar novos modos de nos compreendermos.

UM CAMINHO COMPLEXO
E José Saramago, o neorrealista dos começos, evolui naturalmente no sentido do recurso a elementos que abrangem a realidade e o mistério, além do encontro com a vontade de emancipação, como se queira entendê-la. A escolha de Ricardo Reis, em “O Ano da Morte” é, assim, justificada “por ele ser o contrário de mim”; “escolhi-o por isso, para falar dele e para falar de mim. São dialéticas contrárias”, diz o autor. A ficção obriga, de facto, a que a realidade seja desconstruída, para melhor ser descrita nas suas contradições. E Marcenda e Lídia constituem um permanente confronto. A dúvida sobre a escolha fica em suspenso. E não podemos esquecer a muito inesperada aparição de um “humano” cão das lágrimas em “Ensaio sobre a Cegueira”, símbolo de fidelidade e de compreensão, ou de Salomão, o elefante. Os símbolos são fundamentais explicações. “Não é impossível que, ao menos uma vez, apareça um elefante, e que esse elefante traga sobre os ombros um cornaca chamado subhro, nome que significa branco, palavra esta totalmente desajustada em relação à figura que, à vista do rei de Portugal e do seu secretário de estado se apresentou no cercado de belém”. Há, pois, uma preocupação do escritor na procura de uma melhor compreensão da realidade que o cerca, quer através da interrogação das raízes próprias, quer em referências humanas ou históricas, numa dupla abordagem da emancipação, como exigência pessoal e responsabilidade da humanidade, literária e cultural. “No fundo, a coisa é muito simples: eu posso criticar Portugal, mas há uma pergunta. E quem seria eu se não tivesse nascido neste lugar do mundo?” E na interrogação essencial sobre quem somos, como portugueses, Saramago pergunta: “Como explicar esta dormência, que é também ‘inquietude’, sem cair em destrutivos negativismos? Como evitar que a ‘antiga e gloriosa história’ continue a servir de derradeira e estéril compensação de todas as nossas frustrações?” Longe do conformismo, o que encontramos é uma constante insistência na exigência de recusar o fatalismo. “Como resistir à tentação falaz de sobrevalorizar o que há anos se acreditou ser “uma certa renovação cultural”, fazendo dela um álibi ou uma cortina de fumo. Ou chegámos já tão baixo, que, depois de termos desistido de explicar-nos, nem nos damos ao trabalho de justificar-nos”. A recusa de destrutivos negativismos, de uma antiga e gloriosa história ou de uma estéril compensação das nossas frustrações significará a confirmação do que Eduardo Lourenço designa como a aceitação de quem somos – imperfeitos, nem melhores nem piores do que os outros, postos perante as responsabilidades de corresponder aos desafios presentes e não a ilusões mirificas. Mais do que cair em sonhos providenciais, trata-se de entender que o velho Alexandre Herculano considerava ser o querer a verdadeira explicação da nossa existência coletiva. Na epígrafe de “O Ano da Morte”, está uma citação do próprio Ricardo Reis: “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”. É o confronto que anima o romancista, porque há uma contradição entre a vontade de agir e necessidade de seguir os acontecimentos. Mas Fernando Pessoa está noutra dimensão, do sonho e da indiferença. A ideia de emancipação é mista – emancipando-nos, desejamos libertar-nos do que nos limita e constrange, e participar de um anseio comum, a que não podemos ser indiferentes. Tal como Blimunda, ansiamos por compreender para além das aparências, ver com outros olhos. O espetáculo do mundo faz-nos embrenhar-nos em mil enigmas, sabendo que não podemos desvendá-los como desejaríamos. Apenas podemos demandar novas perguntas. “Exatamente, meu caro Reis, vida e morte é tudo um, Você já disse hoje três coisas diferentes, que não há morte, que há morte, agora diz-me que morte e vida são o mesmo, Não tinha outra maneira de resolver a contradição que as duas primeiras afirmações representavam, e dizendo isto Fernando Pessoa teve um sorriso sábio, é o mínimo que deste sorriso se poderia dizer, se tivermos em conta a gravidade e a importância do diálogo”. Ver melhor significa, no fundo, recusar a tentação de uma racionalidade sem contradições. 

Guilherme d’Oliveira Martins

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