A Vida dos Livros

“Santos e Pecadores – Ensaios Escolhidos”

Acaba de ser publicado entre nós o livro, com seleção e prefácio de Pedro Mexia e tradução de Miguel Freitas da Costa.
(Livros do Brasil)

UM AUTOR INESGOTÁVEL
Quando em 1991 Graham Greene morreu, escrevi um pequeno obituário para o JL, no qual salientava a grande importância futura da obra multifacetada do escritor. O tempo encarregou-se de confirmar essa relevância, que superou todas as limitações circunstancias dos acontecimentos e do tempo em que ocorreram. Hoje não falo do romancista, mas do cronista e do seu testemunho. Os ensaios e as crónicas provêm de Collected Essays (1969), The Probable Graham Greene (1973), Yours etc. – Letters to the Press (1989), Reflections (1990) e The Graham Greene Film Reader (1993). A obra resulta de uma escolha muito cuidada e oportuna, através da qual Pedro Mexia nos põe em contacto com a riquíssima personalidade de um escritor tantas vezes incompreendido, sobretudo a partir de algumas falsas simplificações. Devo, aliás, nesta circunstância, saudar especialmente o facto justíssimo de Pedro Mexia ter sido galardoado, pela obra Lá Fora, (Tinta da China), com o grande prémio de crónica e dispersos literários da Associação Portuguesa de Escritores, com o apoio do Município de Loulé. E se o faço tal deve-se ao facto de o organizador e prefaciador deste volume, demonstrar com este livro de novo a importância da crónica e da atenção ao diálogo literário que se estabelece entre os escritores e os seus leitores. E não posso esquecer, na minha adolescência, que Graham Greene se tornou um dos meus autores preferidos, não apenas pela leitura apaixonante das suas obras e pelo acompanhamento da sua vida, mas também pela leitura de autores que sobre ele falaram, como João Bigotte Chorão, que aqui saudosamente recordo, e o Padre Manuel Antunes. E o prefácio de Pedro Mexia levou-me naturalmente à lembrança dessa minha paixão juvenil.

UM “ETHOS” DE PARADOXOS
Os tempos em que esteve nos serviços secretos, no MI6, e em que passou por Portugal nessa qualidade, afinaram nele o que o prefaciador designa como “um ethos de dissimulação e sinuosidade do qual nunca se libertou”. É, no entanto, mais do que isso, mas a verdade é que o culto dos paradoxos está ligado à essência do seu modo de ser. Isto apenas pode ser estranho para quem não entenda a raiz apostólica da “fé” abraçada em determinado momento da vida do romancista. Não por acaso, quando pediu o ingresso na Igreja Católica, o nome que adotou como catecúmeno foi o de Tomé, o do apóstolo que duvidou, e que apenas acreditou quando pôde colocar o dedo na ferida aberta pela lança no corpo de Jesus. Em toda a vida Graham Greene recordou este facto e a coerência desta atitude. Sendo muito diferente de Mauriac, Bernanos, Bloy, Chesterton e Waugh – o que o romancista “elogia nesses escritores não é a faceta apologética, mas a forma como utilizam, cada um a seu modo, a ‘dimensão adicional’ que a fé católica lhes oferece”. Assim se entende que diga: “Não aprecio muito a ‘literatura empenhada’, na medida em que divide o mundo em bem e mal. Não tenho desprezo por ela, mas é-me alheia. Não acredito que um escritor possa influenciar a política. Devemos deixar a política aos políticos”. Lembro-me bem das resistências de muitos relativamente às obras de Greene, por se pensar que os paradoxos que cultivava pudessem ter a ver com opções políticas extremas. Assim não era, porém. Se tinha bem presente o exemplo de S. Tomé, não esquecia as negações de Pedro ou os imprudentes encontros de Cristo com a samaritana ou com a mulher adúltera – que não podiam deixar de se relacionar com exemplo do clérigo alcoolizado de O Poder e a Glória. Por isso, sempre se incomodou quando o designavam como “escritor católico”. Por isso, tornou claro que “nunca escreveria um livro para chamar a atenção das pessoas para uma convicção política ou religiosa”. Por isso afirmou não ser possível criar um Homem Novo. O “mais que podemos desejar é uma mudança de condições que torne os pobres menos pobres e os ricos menos ricos. Sou por mais humanidade, não por um novo conceito de humanidade”. Quem leu com atenção o que escreveu, facilmente percebe que lhe interessaram sobretudo as pessoas – até porque desconfiava dos idealismos românticos. Não foi amigo de Fidel, mas considerava-o como uma fascinante mistura de idealismo e força retórica. Na guerra de Espanha era contra Franco, mas não podia aceitar o que aconteceu do lado republicano. E afirma: “a política romântica é perigosa e tende a ser desumana. Preferiria viver sob o senhor Gladstone”. A atração emocional pelo catolicismo sentiu-a no México, perante uma Igreja proscrita com os seus crentes perseguidos. “Vi os índios descerem das montanhas e entrarem nas igrejas, onde tentavam recordar os velhos ritos”. Além do culto do paradoxo, é a recusa do tédio que o levou a escrever, do mesmo modo que as injustiças lhe trouxeram os temas. “As injustiças de que me apercebo não me encolerizam; melhoram os meus poderes de observação. A distância é um dos requisitos da boa literatura”. E isto leva Graham Greene a ser um dos grandes cultores da boa literatura. Assim, mais do que o ethos da sinuosidade, o que encontramos no autor de O Nó do Problema é a busca dos caminhos insondáveis e difíceis em que a humanidade se manifesta. Daí uma inesperada proximidade com Chesterton, quando este reformula “o pensamento original com a frescura, a simplicidade e o entusiasmo de uma descoberta”. Qual a chave de Ortodoxiasenão um labirinto de opções heterodoxas? Como entender o clube dos homens irados, como Bloy e Bernanos, senão através de uma tradição que remonta a Dante “que amava bem porque odiava”? E como não ligar Pascal e Mauriac no sentido da prioridade dada às ações humanas, imperfeitas e contraditórias?

A MAGIA DO CINEMA
A título de exemplo leiam-se os textos sobre cinema – aí encontramos muito mais do que uma apreciação meramente técnica, deparamo-nos com a inovação (do cinema mudo ao sonoro, do preto e branco à cor) e com a apreciação relativamente aos diferentes temas e autores, sempre partindo de pessoas. E é delicioso o diálogo a propósito do filme O Terceiro Homem (1949) entre Graham Greene, Carol Reed e o produtor de E Tudo o Vento Levou David Selznick… Apesar de muitas dúvidas e bizarras sugestões, prevaleceu felizmente a ideia original, que se traduziu num extraordinário sucesso de um dos mais belos filmes do pós-guerra. Como afirma Pedro Mexia: “impregnado de teologia, impressionado com a Igreja dos humilhados e ofendidos, solidário com os católicos perseguidos (O Poder e a Glória, 1940), apoiante do Concílio Vaticano II e da Teologia da Libertação, Greene sempre se mostrou hostil a tudo o que lhe parecesse conservadorismo ou impiedade”. Mas a espessura humana do escritor é muito mais rica do que as simplificações ideológicas. E o tempo tem revelado que para si o mais importante era a compreensão do género humano.


Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

Subscreva a nossa newsletter