UM REPOSITÓRIO ABRANGENTE
Quatro partes constituem este repositório, no qual se pretende compreender um autor múltiplo e uno. Começamos por encontrar um “estrangeirado nato”, no período entre 1888 e 1905; depois, “o poeta como transformador” (1905-1914); em seguida “sonhador e civilizador” (1914-1925) e, por fim, “espiritualista e humanista” (1925-1935). Pessoa é um escritor vulcânico, segundo o seu biógrafo, “e quando as palavras começavam a fluir, usava todos os tipos de papel à disposição – folhas soltas, blocos de notas, papel de carta dos cafés que frequentava, páginas arrancadas de agendas ou calendários, as costas de tiras de banda desenhada e folhetos, sobrecapas, bilhetes de visita, sobrescritos e margens de manuscritos alinhavados alguns dias ou anos antes. E todos eram por ele depositados nessa grande arca de madeira: a herança que deixava ao mundo. Seriam necessárias décadas de devotado labor por parte de académicos e bibliotecários para que esse achado textual precioso fosse inventariado e largamente publicado, espantando-nos com as suas quantidade, qualidade e heterogeneidade». A arca tornou-se referência e mito. E sabemos bem que significava para o poeta a criação e o culto dos mitos. O certo é que “ainda mais surpreendentes do que os copiosos escritos exumados da arca eram as dúzias de alter egos desconhecidos que, depois de se esconderem lá durante anos, entraram no mundo como se tivessem sido despertados de um sono encantado”. Do filósofo esotérico Raphael Baldaya ao ultra-racional Barão de Teive, passando pelo único heterónimo feminino, o da tuberculosa Maria José, apenas três dos autores criados por Pessoa, tiveram desenvolvimento pleno – Alberto Caeiro da Silva (1889-1915) autor de “O Guardador de Rebanhos” e de “O pastor Amoroso”; Ricardo Sequeira Reis (1887), médico, professor de Latim no liceu, autor de odes clássicas à maneira de Horácio, emigrado no Brasil e Álvaro de Campos, engenheiro naval, formado na Escócia, nascido em Tavira (1890), o mais assertivo e prolífico dos heterónimos pessoanos… Mas o mais importante trabalho de Pessoa em prosa encontra-se no “Livro do Desassossego”, que “ilustra de uma forma magnífica o princípio da incerteza que percorre o seu universo literário”. São quinhentos fragmentos, que apenas viram a luz do dia em 1982, cujo corajoso narrador é Bernardo Soares, um semi-heterónimo, para quem “o único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”. A magia do desassossego é a coexistência da coerência e da contradição, como marcas da complexidade da vida humana. E Zenith compara esse livro ao de Robert Musil “O Homem sem Qualidades”. Contudo, a ausência e a sobreabundância de qualidades representam as faces contraditórias do homem moderno, que ocupa Fernando Pessoa.
O TEMPO NECESSÁRIO PARA ENTENDER
Foi preciso tempo, porém, para que os leitores de Pessoa pudessem compreender uma poética de identidade fragmentada. E Eduardo Lourenço foi quem, de modo totalmente original, pôde compreender os elos íntimos dessa misteriosa diversidade em “Pessoa Revisitado”. Talvez tenha sido vantajoso o atraso na revelação da obra crucial, para que a crítica pudesse ultrapassar as primeiras impressões. “O seu universo de partes desligadas, diz Zenith, antecipa a nossa própria mundivivência, com as evoluções na história, na ciência e na filosofia a desenganarem-nos em relação a quaisquer totalidades harmoniosas que alguma vez tenhamos prezado. Por outro lado, tudo o que existe deve, em última instância, ligar-se, uma vez que é parte do existente, e os cosmólogos e filósofos contemporâneos elaboraram em relação à origem do mundo algumas teorias elegantes do quadro global, em que o Big Bang pode ser apenas um acontecimento local”. Recusando o completo e o definitivo, Pessoa interessa-se pelo oculto e a heteronímia pode ser explicada como um meio quase religioso ou alquímico que permite progredir, na viagem espiritual de Fernando Pessoa, que anseia sentir tudo de todas as maneiras possíveis. E há uma citação misteriosa e isolada, entretanto encontrada, de um fragmento da carta de S. Paulo aos Coríntios, que pode ser reveladora: “Eu me fiz tudo para todos, a fim de salvar a todos”. A diversidade é, de facto, uma indelével marca pessoana. Nos amores, tem com Ofélia Queiroz uma relação indecisa e a marca da sexualidade é difusa. Na política, António Mora defende a causa alemã na guerra, enquanto Fernando Pessoa se inclina para os Aliados, apesar do entusiasmo limitado. A verdade é que é a arca, mais do que os testemunhos pessoais, a grande reveladora da vida misteriosa do poeta. Tímido e delicado na conversa, tinha bom sentido de humor, vestia com esmero e era muito educado. Há unanimidade nessa apreciação. E quanto a confissões autobiográficas, encontramo-las espalhadas em toda a parte. Na “Tabacaria”, Campos fala do hipotético amor com a filha da lavadeira e acena ao Esteves pela janela. Em ambos os casos há verosimilhança com a realidade. Richard Zenith procura, no fundo, cartografar, tanto quanto possível, a vida imaginativa do poeta e consegue-o com originalidade e novas descobertas. Como afirmou John Keats, “a vida de um homem digna de valor é uma alegoria contínua”. O que Pessoa imaginou, visionou e projetou foi único na sua vastidão e variedade. – «Sê plural como o universo!» – escreveu de forma imperativa num papel encontrado na arca, na década de 1960. Eis a chave!
Guilherme d’Oliveira Martins
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