A PROCURA DAS RAÍZES
Se há poeta português para quem as raízes culturais são fundamentais, é Manuel Alegre. “Haverá sempre em mim o rio Águeda / Meu ritmo é seu fluir e seu buscar / Quem sabe se outro longe ou se Pasárgada / Haverá sempre um rio para o mar”. As raízes não podem ser esquecidas, e há um amor especial que o poeta nunca esquece, que é o da língua-pátria e da pátria-língua. Sempre um patriotismo prospetivo, como quis António Sérgio, sempre as lições no presente de uma longa história. E Águeda é um símbolo bom, a lembrar a “soberania do povo” e um especial culto ancestral da liberdade (e não esqueço outro amigo dessas paragens, Manuel José Homem de Melo, cuja memória está bem presente). Quando sobre Alfarrobeira e o Infante D. Pedro se lê: “Com D. Pedro outra vez saber ser contra. / Na hora amarga e vil e traiçoeira / ousar ainda a honra e a nobreza / sair em armas e lavar a afronta / com D. Pedro de novo em Alfarrobeira…” – não é um episódio passado que se rememora, é um apelo presente e ético que se proclama. Do mesmo modo, em “amor de fixação”, de “Coisa Amar” (1976), a lembrança de Duarte Pacheco Pereira é a da experiência madre das cousas, que se projeta nos dias de hoje: “naus a voltar no meu gostar de ti; / levai-me ao velho pinho do meu lar / eu vi o longe e nele me perdi”. No fundo, importa tirar lições para o futuro… “Vai-se a vida e cantar é um destino…”
FORMA LÍRICA POR EXCELÊNCIA
Maria Helena da Rocha Pereira escreveu sobre “Sonetos do Obscuro Quê” (1993): “há muito que ele espreitava entre os poemas de Manuel Alegre: a forma lírica por excelência, o soneto”. A afirmação tem de ser lembrada, no momento em que é publicada a Antologia de “Sonetos” (D. Quixote, 2019), que nos permite recordar alguns dos mais belos momentos da criação do poeta. “Desata-se-me o verso no primeiro / no segundo de vento vai vestido / no terceiro de mar e marinheiro / no quarto está perdido está perdido”… A grande professora, que tanta saudade nos deixa, lembrava a sombra de Dante “entre outros nomes tutelares da poesia ocidental” e o “stil nuovo”, que inspirou o nosso Sá de Miranda, fez questão de lembrar a ligação entre amor e reflexão – e uma melodia própria, a exigir “um domínio da forma e dos sons que poucos possuem; e bem assim a concentração num conceito final, que surge como uma conclusão natural, ou então como uma farpa aguda, a apontar noutra direção. Ora, todas estas capacidades estavam presentes há muito na arte deste poeta”. Nada melhor do que estas palavras para elogiar o poeta, na sua originalidade, do domínio da palavra, no ritmo e no estilo, mas sobretudo na expressão originalíssima, que caracteriza um poeta de exceção. O grande poeta é quem é capaz de ligar o rigor à originalidade, tornando-se inconfundível. “De novo a via clara a via obscura / ligar a doce rima e a rima dura / da Provença e Toscana a luz e a rosa”.
LEMBRAR A POESIA
O poeta Manuel Alegre vai ser a figura homenageada este ano no festival literário “Escritaria”, que vai decorrer de 21 a 27 de outubro, em Penafiel, como sabemos, o festival “é o único que se dedica a homenagear um escritor vivo de língua portuguesa”, com a cidade a transformar-se, “por uns dias, na sua própria cidade”. É uma justa homenagem a um dos autores mais importantes das culturas de língua portuguesa. De facto, Manuel Alegre tem, ao longo de uma obra, muito vasta e rica, seguido, com grande coerência a linhagem muito antiga da nossa língua, que tem as suas bases na poesia trovadoresca. Desde “Praça da Canção” (1965) e “O Canto e as Armas” (1967) que encontramos na escrita de Manuel Alegre ressonâncias de aventura e de liberdade, que o ligam de modo indelével a uma antiga poesia de resistência, que nos conduz aos maiores nomes das letras portuguesas, que usaram essencialmente a matéria-prima da liberdade. Por isso citou Afonso Lopes Vieira quando recebeu o Prémio Camões (2017): “Diria que não seriam dignos do épico os poetas portugueses que não passassem pelas prisões. Eu sinto-me herdeiro dessa tradição. Acredito na força mágica e libertadora da palavra poética”. E em “Resistência”, lembra: “Desinfeção: metáfora da Europa. / Resistir sem piedade e sem tardança. / ‘Terrífico é o momento que nos toca’. / Com René Char as sílabas de França”… Lembramos ainda o que omautor disse quando recebeu o Prémio D. Dinis, na Casa de Mateus (2008) – exprimindo o grande contentamento por receber uma distinção com o nome do nosso Rei-poeta: «As naus são sempre as doze naus da imaginação (o prémio referia-se ao livro “Doze Naus”). As de Ulisses. Mas também a da poesia portuguesa. Recordo Miguel Torga: “Todos os caminhos transversais de Portugal vão ter ao mar. Verificá-lo é avivar na consciência a nossa razão de ser. Nascemos para embarcar. Ou de imediato ou na lembrança ou na imaginação.” E já o poeta Afonso Duarte (1884-1958) tinha dito: “Há só mar no meu país”. É verdade que somos hoje um “país pequeno e pobre”, com “muito passado e muita história e cada vez menos memória, país que por vezes já não sabe quem é quem, país de muito mar e pouca viagem”. Mas somos também o país em que em português o vento vem do mar. País do Mar Absoluto. País em que, por vezes, “há um navio fantasma sem ninguém ao leme”. País em que sobre o mar visível haverá sempre o invisível, o mar de dentro. E é nesse que todos nós continuaremos sempre a navegar». É significativa esta passagem, uma vez que estamos no cerne da identidade cultural, que Manuel Alegre tem cultivado, com abertura e independência. “Gramática de sal e maresia / na minha língua há um marulhar contínuo // Há nela o som do sul o tom da viagem. / O azul. O fogo-de-santelmo e a tromba / de água. E também sol. E também sombra”… Contra a ideia de identidade fechada e egoísta, contra um conceito burocrático de patriotismo ou de comunidade, o autor com agudo sentido crítico, rebela-se contra sermos um país com “cada vez menos memória”. Apenas se cultiva e aprofunda a memória, cuidando do sentido crítico, da independência, do apego à liberdade. E é isso que tem caracterizado a voz inquieta e sempre atenta de Manuel Alegre – seguindo os passos de Camões, Bernardim, Sá de Miranda, Bocage, Garrett e Herculano, Antero de Quental, Cesário, Camilo Pessanha, Pascoaes, Pessoa e Torga de Sophia. Como esquecer: “E o seu poema é quase como casa / e a casa é o outro espaço onde Sophia / reparte à sua mesa o pão e os versos”? O conjunto dos sonetos dá voz ao poeta que não esquece que a cultura e a língua portuguesas resultam de uma rica encruzilhada de influências, que se enriquecem no diálogo e na recetividade de novos elementos e fatores. Daí a necessidade de atenção crítica e de capacidade para responder aos desafios do inesperado e do incerto: “Eu sou o renitente o inconformado / Por isso me deitaram mau-olhado / e por isso persisto e canto e falo” – assim diz o décimo soneto do português errante; depois de ter afirmado: “Eu sou o solitário o estrangeirado / o que tem uma pátria que já foi / e a que não é. Eu sou o exilado / de um país que não há e que me dói”…
Guilherme d’Oliveira Martins
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