BIBLIOTECA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Quando Oliveira Martins iniciou, em 1879, a Biblioteca das Ciências Sociais, projeto a um tempo de reflexão histórica e de sentido pedagógico, começou, significativamente por publicar História da Civilização Ibérica, antes da História de Portugal, para marcar com clareza a necessidade de integrar a realidade portuguesa no contexto geográfico e político da Península Ibérica. A Biblioteca pretendia “preencher uma lacuna” e “uma necessidade das mais graves” – a de “generalizar entre as classes médias portuguesas uma ordem de conhecimentos que sem ofensa dos nossos brios se pode dizer ignorarem”. Tratava-se de usar termos inteiramente novos e atrativos, sem concessão às “insonsas biografias de reis, de tratados de ontologia bolorenta, de fardos de retórica piegas, de lendas milagreiras e histórias que já são sagradas apenas para os imbecis”. Na História da Civilização Ibérica, o autor sustenta que Portugal e Espanha fazem parte de um mesmo corpo, animado por um espírito comum. Na prática, prossegue-se, por caminhos próprios, a reflexão de Antero de Quental na segunda conferência do Casino – sobre as causas da decadência dos povos peninsulares. O individualismo, o jesuitismo e as conquistas seriam as razões de decaimento, que conviria recordar, para que no futuro não se repetissem os erros. A Península Ibérica deveria, assim, agir como um todo, afinando as suas complementaridades no contexto europeu. E a “sociedade portuguesa” constituía uma “molécula” do organismo social “ibérico, peninsular ou espanhol”. Contra a tentação hegemónica, o que o escritor defende é que a história peninsular permita compreender que os dois povos precisam um do outro. Aliás, no texto incompleto, publicado postumamente, sobre o Príncipe Perfeito, ao tratar da batalha de Toro, com D. Afonso V pretendente ao trono de Castela, o historiador enfatiza as qualidades de D. João II, que participa brilhantemente na batalha em que seu pai é vencido. Está em causa um pensamento de complementaridade estratégica com o que virá a ser o reinado dos Reis Católicos. Só uma Península coordenada poderia ser cabeça eficaz de um império universal.
QUE CIVILIZAÇÃO IBÉRICA?
No Seminário Internacional “Oliveira Martins e o seu tempo (1845-1894)”, coordenado pelos Professores Hipólito de la Torre, Angeles Lario e Paula Borges, que teve lugar em Madrid a 24 e 25 de outubro, na Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED), houve um importante debate sobre a obra do historiador português no contexto da Geração de 1870. Sérgio Campos Matos interrogou-se sobre o significado do conceito de “civilização ibérica” e desenvolveu-o não apenas em termos comparados, mas também sobre o seu significado para a compreensão da realidade peninsular. E o certo é que há uma crítica clara relativamente à obra clássica de Henry Thomas Buckle, History of Civilization in England (1857-1865), em especial quanto à “lenda negra” sobre a civilização peninsular. “Negar redondamente a hombridade peninsular, não surpreende num inglês incapaz de a compreender”. Demarcando-se da ideia de que os povos peninsulares corresponderiam ao paradigma do atraso, Oliveira Martins faz uma análise certeira, abrindo o caminho para a necessidade de aprofundar a capacidade de emancipação de corrente do carácter ibérico – e neste ponto associa o sentido crítico à exigência de uma vontade de liberdade e progresso, prosseguindo a célebre conferência de Antero de Quental. Leia-se, assim, o texto de Oliveira Martins na “Revista Ocidental”, “Os Povos Peninsulares e a Civilização moderna” (1875) que constitui o esboço da obra que abre a Biblioteca das Ciências Sociais. Em traços gerais, há uma clara recusa das simplificações do anacronismo e do patriotismo, na linha de Alexandre Herculano ou de Eça, bem como o enaltecimento do sentimento de independências (hombridade), que se prolonga numa perspetiva universalista (que Jaime Cortesão desenvolverá). Emílio Castelar (1832-1899), Juan Valera (1824-1905), Menendez Pelayo (1856-1912), Angel Ganivet (1865-1898) (mesmo sem citar) e Miguel de Unamuno (1864-1936) revelam a leitura de Oliveira Martins – numa perspetiva de compreender a dualidade política, pressupondo um patriotismo ideal ibérico ou hispânico e um patriotismo real das nações peninsulares. E assim a persistência do historiador português é a de uma aliança prioritária ibérica e não de uma união uniformizadora. Assim, temos como subjacente à História da Civilização Ibérica (HCI)não a ideia de nação étnica, como queria Teófilo Braga, mas de uma nação moral, centrada na vontade, na linha de Alexandre Herculano ou de Antero. Não por acaso, o primeiro livro de Oliveira Martins é Febo Moniz (1867), obra crítica do iberismo político uniformizador, de Sinibaldo de Mas (1809-1868). O conceito integrador, mais rico, assente na consciência moral e no carácter dos povos ibéricos leva-nos ao conceito de civilização ibérica e ao seu sentido crítico e positivo: “A deplorável confusão que se faz da história e da política, levando para a primeira as preocupações da segunda; vendo um tirano em toda a parte onde se encontra um rei, um salteador sempre que se encontra um nobre, um charlatão sempre que se topa com um padre: essa deplorável paixão confunde, baralha tudo e torna impossível a compreensão das coisas” (HCI, I,3). Assim se põe a causa a “tese” de Buckle – afirmando um carácter peninsular baseado em atos voluntários e livres, não explicáveis por simplificações. A civilização ibérica tem uma história e uma evolução – e Oliveira Martins pensa criticamente, mas não aceita um qualquer fatalismo de atraso ou de medo. “Em vez de condenar, expliquemos” (Ibidem).
IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA POLÍTICA
Se na compreensão da noção complexa de “civilização ibérica”, designadamente na sua projeção extraeuropeia, temos de entender o autor na sua preocupação de integrar a diversidade e a complexidade, o mesmo devemos fazer quando ao organicismo e ao “cesarismo”. Não devem ser feitas projeções lineares ou tentativas de criar uma história presuntiva – procurando projetar depois da morte de um autor o que teria feito ou pensado se ainda vivesse noutro tempo. Urge compreender e explicar – afirma o historiador. Leia-se, por isso, com atenção a perspetiva orgânica de “As Eleições” (1878), num momento em o autor procurou pensar em coerência com o socialismo que preconizava, do mesmo modo que o “cesarismo” tem de ser visto no âmbito de um pensamento crítico complexo. Não são os textos circunstanciais que explicam essa perspetiva, mas sim a História da República Romana (1885), escrita a pensar na tentativa de salvamento da República, através de uma solução provisória e dúbia, entre a imitação da realeza e o simulacro republicano. E sobre as virtudes do pensamento crítico, Antero fala do ceticismo – “em que tudo tem de se dissolver provisoriamente”. Não devemos, porém, cometer anacronismo na consideração do pensamento político. Como aconteceu, no célebre diálogo com Alexandre Herculano, o velho mestre insiste em que é liberal mas não democrata. E o jovem responde que não pode haver liberdade sem igualdade, nem igualdade sem liberdade. Não falamos, no entanto, da democracia na aceção atual, e recordamos a experiência nas minas de Santa Eufémia em Espanha, lembrada por Eloy Fernandez Clemente, onde descobrimos a relação humana com os operários, a preocupação com as suas condições sociais e económicas e com a educação dos seus filhos. E é aí que se nota, nas diferenças, uma evidente coerência.
Guilherme d’Oliveira Martins
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