A Vida dos Livros

“O Mundo À Minha Procura” de Ruben A.

“O Mundo À Minha Procura” de Ruben A. (Assírio e Alvim, 2020) é uma obra-prima da literatura memorialística portuguesa, a merecer uma atenção especial no momento em que o centenário do autor continua a ser celebrado.

O MERECIMENTO INDISCUTÍVEL

Neste ano tão estranho, cheio de medos e motivos tragicómicos, seria suposto termos celebrado com a elevação necessária o centenário de Ruben A.. No caso de Ruben havia a especial razão de se tratar de um autor que merece ser mais e melhor conhecido, apesar de ter sido um audaz cultor da língua e da cultura, como poucos no século que passou. Daí não haver dúvidas sobre que o futuro se encarregará de lhe dar o adequado merecimento. É verdade que tudo sobre a recordação da memória do escritor (reflexões, debates, lembranças) continua a estar previsto para o ano 2021, mas o importante é que fica lembrado – e devendo sobretudo continuar a ser lido. 2021 quase parece um daqueles tempos previstos pelo teatro do absurdo, em que se propõe acertar os relógios, depois de uma suspensão da máquina do tempo, estranhamente desorientada. O certo é que ainda não temos em funcionamento o mítico “Cronoscafo”, previsto nas aventuras de Blake e Mortimer e de algum modo na mente de H. G. Wells, e nada se sabe verdadeiramente sobre o efeito das desventuras do famigerado vírus descontrolado sobre homens e máquinas. Felizmente o tempo não parou e a terra continuou a girar. Por isso, temos na lista dos melhores livros do ano a reedição do genial O Mundo à Minha Procura. Importa dizer que Memórias escritas por quem tinha 46 anos seriam sempre um desafio audacioso. Mas nós, leitores ávidos, só temos a agradecer uma tal decisão extraordinária, uma vez que pudemos contar com uma obra-prima, retrato especial de uma sociedade que evoluía da autarcia para a internacionalização, descrita à luz do percurso multifacetado de um intelectual culto e cosmopolita de mente arejada, com um esmerado gosto. Num só volume, passámos a contar com esta pérola literária (Assírio e Alvim, 2020), que ombreará em linguagem e encenação moderna com as melhores Memórias portuguesas, que Ruben conhecia, aliás, muito bem. E porque conhecia bem, estas são diferentes de quaisquer outras e têm a marca indelével do pós-guerra, com um especial tom anglo-saxónico. “Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa. Põem-se as telhas onde faltam, instala-se um novo sistema, e no jardim das delícias, no passeio depois de jantar, nas madrugadas sem Deus ouvimos uma voz que nos buzina que dali para a frente a contagem é outra”. Felizmente, assim pensou Ruben e tal permitiu não termos um repositório de factos e circunstâncias, mas uma procura do tempo. Henry Miller afirmou, assim, que “a Autobiografia é o mais puro romance, porque a ficção está sempre mais próxima da realidade que o facto”. Se dúvidas houvesse, bastaria lermos Ruben A. e propositadamente não faço qualquer comparação com outros autores e outros cultores do género, pois este caso é absolutamente inimitável. “O que me interessa sou eu”. E há o debruçar sobre um poço fundo.

COMPREENDER O REALMENTE IMPORTANTE

“Um dia compreendi a importância que teve para mim o Campo Alegre – o sítio, o cheiro, a vista, as árvores. Foi a fragrância quem me recebeu primeiro, facilitando-me no vaivém da ondulação distinguir as plantas e a terra que as recolhe”… E assim o escritor quis-se descobrir, na relação complexa entre o seu próprio lugar e a coexistência com os lugares dos outros, pelas forças e emoções por trás da vida… E assim encontramos um curioso retrato da sociedade portuguesa, onde “há um ciúme indescritível perante a coragem e perante a cultura. Que um dos seus membros se liberte pelo espírito ou pelo seu valor humano é o maior insulto que, eles, atrasados culturais, julgam que se lhes pode fazer. Sentem-se ofendidos, reagem de certo modo com maledicência, uma vez que não tendo nem grandes amores nem grandes ódios oferecem apenas o mesquinho da perseguição, fechando as casas, achando as pessoas uns pesos, ou votando a um ostracismo aqueles três ou quatro – em cada década só há também três ou quatro aves migradoras – bodes expiatórios da purga mental da sociedade, ancorados para toda a vida a um inferno. Esquecem-se da felicidade que irá acolher os eleitos, os que souberam fazer a escolha depois de anos de amadurecida visão, depois de terem estado sós”… Ruben A. pensava nos inúteis, nos cadáveres adiados que procriam, no dinheiro que alimentava o parasitismo, nas flatulências de pequeno efeito, nos ricos que criavam uma moral para si, na sociedade que temia o valor dos que assumem a coragem de procurar ver longe e largo. E ao longo da sua vida, encontrou vezes sem conta esses entraves e bloqueios, nunca tendo renunciado, porém, à independência de pensar pela própria cabeça, de ser inconformista e de ter consciência (desde muito jovem) do contraste entre o mundo absurdo do medo de falhar e a liberdade absoluta, que sentia no Campo Alegre… “Autor libérrimo e libertador” – lhe chamou Eduardo Lourenço. O sentido crítico, em ligação com o rigoroso conhecimento da História mercê de uma simbiose de método entre o rigor e uma rara intuição capaz de entender os grandes movimentos e tendências, permitiu-lhe ser um analista lúcido da realidade portuguesa, não esquecendo a lógica picaresca.

PORTUGAL HETEROGÉNEO E INDEFINÍVEL

É um Portugal heterogéneo e indefinível que encontramos nas memórias de Ruben A., situado entre a tradição e a vertigem da modernidade, entre as raízes antigas da família e o fascinante mundo vulgar que a rodeava, ora visto da janela sobranceira de um Daimler familiar, ora considerado na leitura dos clássicos, que se impõe muito gradualmente no aproveitamento irregular do estudante  (Garrett das Viagens na Minha Terra, Júlio Dinis da Morgadinha dos Canaviais e Camilo). “Camilo entendia-me. Depois de Júlio Dinis era ele quem me aproximava de um dia a dia verídico, cheio de suco, romance da vida, razão de ser no jogo de palavras cruzadas…” E se a literatura o entusiasma de um modo prospetivo, usando as potencialidades da língua com um misto de originalidade e de compreensão do carácter vivo e mutante da identidade, a natureza e o património cultural são fatores vivos de valorização humana: “Olho para tudo tendo como pano de fundo a intensidade colorida pela maior realidade de Portugal: o céu. O nosso céu é pessoal, claro, transparentem, grandioso, sonhador de terras longínquas – é um céu aberto”. E a defesa do património histórico: “É uma obrigação moral, nacional. Impõe-se no imediato que as vilas históricas, as cidades mais ricas do passado não sejam avassaladas por estranhos, que sabem deitar abaixo e nada fazer de arte no local da demolição”… E a ilustração desta preocupação a um tempo crítica e alegre projeta-se no genial romance A Torre da Barbela, recentemente reeditado, na expressão de José-Augusto França: um grande romance, dos mais importantes do século XX (Livros do Brasil, 2020). “Ao fim da tarde, antes do crepúsculo cantar as suas loas e sem se descortinar a realidade, apoderava-se da Barbela um sentido incógnito da existência. “Forte como as nacionalidades e rija como a têmpera da lâmina do Xasco, o maior escanhoador da Ribeira Lima, a Torre preparava-se para o banho noctívago na sua vida de séculos. Existissem ou não estrelas, fosse breu ou luar a jorros pelos campos marginais, o mundo abria-se então dividindo o tempo. (…) De noite ressuscitavam e, de companhia, traziam os amores e os ódios de outras eras e de outras sensibilidades. (…) Aquele ressuscitar transfigurava a Torre”. E assim se desenrola uma História portuguesa, através de fantasmas, com glórias e contratempos, mas sem ilusões que pudessem fazer esquecer vontade e a liberdade… 

Guilherme d’Oliveira Martins

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