UMA BIOGRAFIA IMPORTANTE
A leitura de
biografias, quando se trata de personalidades marcantes, traz-nos muitas
surpresas, sobretudo quando se revelam facetas surpreendentes com
repercussões políticas e históricas. Refiro-me à tradição anglo-saxónica
que, bem praticada, nos permite conhecer não apenas a vida e o percurso
de quem é biografado, mas também o contexto em que a ação se
desenvolve. O caso da obra O Marechal William Carr Beresford,
biografia escrita por Marcus de la Poer Beresford (Tribuna da História,
2021), merece uma especial atenção, uma vez que se trata de um estudo
bem fundamentado, sobre uma figura controversa com intervenção ativa na
História política portuguesa, cujo melhor conhecimento da personalidade e
da vida permite esclarecer alguns acontecimentos importantes, num
período complexo, como é o das invasões napoleónicas. Estamos num
momento pleno de fatores contraditórios e paradoxais. O Marechal
Beresford foi um influente militar irlandês, condecorado pelos governos
de Portugal, da Grã-Bretanha e de Espanha, que exerceu as funções de
comandante supremo do Exército Português durante 11 anos, grande parte
dos quais durante a Guerra Peninsular. Sobre ele, Arthur Wellesley,
duque de Wellington, futuro primeiro-ministro britânico (1769-1852), com
intervenção muito ativa no comando das mais importantes operações
militares em Portugal durante as invasões francesas (1808-1812), afirmou
que William Beresford, seu segundo-comandante, foi «o homem mais
competente que eu já vi no Exército». A biografia de Marcus Beresford
dá-nos conta de uma longa e profícua carreira militar. Filho natural do
primeiro marquês de Waterford, Beresford alistou-se no Exército
Britânico em 1785, tendo servido no Mediterrâneo, no Egito, na África do
Sul e no Rio da Prata, chegando a Portugal em 1807-1808 ao arquipélago
da Madeira, com a missão de garantir a defesa avançada do continente
português, a fim de manter a sua independência, aquando da partida da
corte para o Brasil e da resistência à primeira invasão francesa sob o
comando de Junot. Assiste, porém, à assinatura da Convenção de Sintra
(1808) que, no seu entendimento, se traduz num acordo leonino, em que
Portugal sofre uma autêntica humilhação, tal a dimensão das concessões
impostas pela França para a retirada do governo de Jean Andoche Junot
(1771-1813). Após uma campanha vitoriosa no Norte do País sob o seu
comando militar, Beresford é incumbido formalmente da reorganização do
Exército português, que estava depauperado e sem uma estrutura capaz de
responder positivamente às ofensivas de Napoleão, cujo exército tinha
significativa superioridade estratégica e militar.
UMA REESTRUTURAÇÃO MILITAR
Desde
a reforma do Conde de Lippe, no período pombalino, não havia medidas
sistemáticas de reestruturação militar que permitissem adotar um sistema
baseado numas forças armadas modernas e eficazes. Foi a campanha do
Verão de 1809 que iniciou os preparativos para uma defesa efetiva do
território português, numa verdadeira guerra de libertação nacional.
Esta concentração de esforços foi uma exigência objetiva, fruto das
dificuldades no relacionamento operacional de Wellington com as forças
espanholas, o que determinou a integração das novas unidades militares
portuguesas ao lado das forças britânicas veteranas, para os seus
difíceis combates contra o exército napoleónico. Passou assim a haver
condições para uma melhor cooperação anglo-lusa, podendo dizer-se que
nasceu então um verdadeiro novo Exército português, em 1809-1810.
Importa explicar que o regime de incorporação militar neste período foi o
da mobilização geral perante uma ameaça estrangeira, diferente do
serviço militar obrigatório ou conscrição e do antigo sistema
mercenário, que tinha permitido a Gomes Freire de Andrade e a outros
oficiais portugueses, como o primeiro Marquês de Loulé, alistarem-se em
diversos exércitos europeus, incluindo na Legião Portuguesa, que foi até
á Rússia, sob o comando de Bonaparte. William Beresford vai, nesta
reforma do Exército, assegurar um reforço importante da disciplina,
impedindo movimentos de abandono das fileiras militares ou a
proliferação de refratários. Esta reorganização, seriamente
disciplinada, revelar-se-á fundamental para o estabelecimento de uma
cadeia de comando eficaz. As apreciações insuspeitas de diversos
intervenientes nas guerras peninsulares sobre a boa prestação dos
oficiais e regimentos portugueses, designadamente no Buçaco e na
preparação em 1813 da invasão de França são, aliás, muito positivas,
quer pela qualidade do comando quer pelos efeitos da formação
ministrada. A qualidade do Exército, bem como as soluções técnicas nas
Linhas de Torres Vedras funcionaram como poderoso meio de defesa que
levou o Marechal André Massena e o seu exército a retirar do território
português.
A COEXISTÊNCIA DE PARADOXOS
A
complexidade da situação Peninsular determina, porém, relativamente a
Beresford, uma apreciação paradoxal, referida pelo biógrafo desta obra.
Com efeito, a reforma levada a cabo permitirá a criação de um Exército
português organizado, que irá constituir um fator importante para a
afirmação do novo regime constitucional depois de 1820 e sobretudo de
1834, com a Convenção de Évora Monte e a vitória liberal. Isto, para
além da simpatia dos liberais portugueses que tinham estado emigrados em
Inglaterra pela experiência parlamentar britânica. Merece, aliás,
referência neste ponto o estudo de António Alves-Caetano sobre «Os
Socorros Pecuniários Britânicos destinados ao Exército Português
(1809-1814) – Subsídios para a História da Guerra de Libertação
Nacional» (2013), no qual fica demonstrada a importância do contributo
militar britânico para a preservação da independência nacional, até à
expulsão das tropas francesas. Por outro lado, não pode esquecer-se a
ação de um dos principais protagonistas da Revolução Liberal de 1820,
Manuel Fernandes Tomás, o patriarca da liberdade, como encarregado dos
abastecimentos das tropas britânicas (entre 1808 e 1811), que
desembarcavam junto à foz do Mondego, na sua vila natal, sob o comando
de Arthur Wellesley, como salienta José Luís Cardoso na importante
publicação dos escritos políticos do prócere constitucionalista. Se
dúvidas ainda houvesse, cabe referir, depois dos dramáticos
acontecimentos que contribuíram para a Guerra Civil entre liberais e
absolutistas e afastados os ecos do Congresso de Viena e a influência da
Santa Aliança, a emergência da Monarquia francesa de julho de 1830 e a
chegada dos Whigs (de Charles Grey) ao governo britânico ajudariam a
criar um ambiente europeu favorável à vitória liberal de D. Pedro,
depois da saída do governo de Wellington. Nunca a História política pode
ter explicações unilaterais ou simplistas. Importa sempre entender a
complexidade e os eventuais paradoxos, donde resultam as consequências
fundamentais da evolução social, económica, política e cultural.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença