O FUTURO DA EUROPA, QUE PRIORIDADES
Identidades nacionais, diversidade e complementaridade cultural
Dimensão europeia da Educação
Antes de mais, quero sublinhar o interesse que reconheço nesta iniciativa de trazer à escola e, por via dos professores, aos jovens a questão da União Europeia, da Europa, como se diz mais abreviadamente.
Ao vir a um encontro das escolas, ela inscreve-se no caminho aberto pelos Clubes Europeus, os grande precursores da pedagogia da dimensão europeia na educação.
Com efeito, a minha percepção leva-me a crer que é escassa a informação que chega aos cidadãos e que, a que chega, é esbatida por muito ruído que se produz à sua volta. E não é uma mera representação subjectiva e pessoal. O Barómetro Eurostat confirma essa escassez de informação nas sondagens que sistematicamente vai produzindo.
Em Portugal, os valores do conhecimento da UE são deficientes, embora haja por parte dos portugueses um acordo acentuado a favor da UE.
Informar é, pois, um dever de cidadania e um objectivo que compete aos responsáveis e que a escola pode e deve fazer como lugar privilegiado.
Começava por sublinhar a importância do momento que vivemos:
Concluída a Convenção, estamos prestes a ter uma Constituição Europeia que, naturalmente, sujeita ou não a referendo, vai reger os países da União, combinando-se com as Constituições nacionais.
Podemos nós, podem os jovens que educamos, ficar a leste desta nova realidade?
Não podemos, não podem.
Por isso, este momento constitui um motivo estimulante para reflectirmos sobre a forma como esta dimensão europeia deve ser transposta para a educação, isto é, como deve integrar-se nas nossas práticas educativas, a fim de combatermos a indiferença e o distanciamento e, com lucidez e empenhamento, participarmos, com e pelos nossos alunos, na construção do projecto europeu.
Indubitavelmente, como ponto de partida, temos de estar cientes do que é o projecto europeu, porque nasceu e que valores e princípios elege como finalidade e suporte.
Nasceu de um desejo de paz e segurança, assente num conjunto de valores de excelência moral: a dignidade da pessoa, a liberdade, a igualdade e a solidariedade. No plano dos princípios elege a democracia, os direitos do homem e o estado de direito. Estes valores e princípios fundadores são comuns à diversidade de países que compõem a UE e, por consequência, são os valores do cidadão europeu.
Por isso, ser europeu de parte inteira supõe um perfil de competências que equivale a um bilhete de identidade e a um passaporte para atravessar, com segurança e aceitação, do oeste ao leste europeu, as fronteiras imateriais, as novas fronteiras que organizam os países da União.
Como pode a acção educativa contribuir para formar esse perfil?
No Livro Branco “Cumprir a Europa pela Educação e pela Formação”, publicado em 1997, procurou-se responder a esta questão, estruturando a acção educativa em torno de 4 vectores fundamentais:
a cidadania
a coesão social
a competitividade e a criação de emprego
a sociedade da informação
Abordando o primeiro vector – a cidadania –, com o qual coincide, como veremos, o tema deste EuroAtelier a proposta operativa é a da educação multicultural que, por si, coloca, de imediato, em questão muitas das nossas práticas e, talvez até, alguns preconceitos, mais ou menos conscientes.
E a educação multicultural é o tema que hoje aqui nos reúne sob o enunciado Identidades Nacionais e Diversidade e Complementaridade Cultural.
Tal como cada um de nós transporta em si a unidade do género humano, marcada geneticamente e geneticamente comportando a sua singularidade, também assim acontece nos domínios social e cultural. No primeiro coexistem estes 2 aspectos – unidade e diversidade – como o atestam as múltiplas línguas, realizações diversas da capacidade de linguagem do ser humano. No domínio cultural, não se pode falar de cultura mas de culturas, entendida a cultura como o conjunto de saberes e saber fazer, tradições, normas, tabus, crenças, valores, formas de arte, gastronomia, mitos, transmitidos de geração em geração, apropriados por cada individuo e partilhados pela comunidade.
Diversas nas realizações, as culturas inscrevem-se e podem ser lidas na unidade humana, tal como as línguas, e aprender este reconhecimento é um núcleo central de educação multicultural.
Na Europa existe uma pluralidade de culturas, de línguas e de etnias. Ser europeu é estar aberto a esta diversidade, sem perder as referências das suas raízes originais. Ser europeu não é ser menos nacional ou menos português. Ser europeu é ser mais português e mais nacional, é querer conhecer-se e conhecer os outros, é querer participar numa comunidade de destino, na expressão tão sugestiva de Edgar Morin.
Para que esta cidadania inclusiva seja interiorizada pelos jovens, as práticas educativas escolares devem valorizar a diversidade cultural, a partir dos saberes curriculares, com especial realce para os contributos
da história e da geografia
das ciências
das línguas e das literaturas
do conhecimento dos movimentos artísticos
e da leitura e reflexão sobre os comportamentos sociais e os acontecimentos que vão ocorrendo no mundo que nos rodeia.
Com espírito crítico mas aberto, sem estereótipos ou preconceitos, contextualizando a informação e estabelecendo relações entre as diversidades identificadas, aprende-se a olhar os outros com um olhar limpo, com olhos de ver.
Assim, há que redescobrir como historicamente fomos capazes de ser nós próprios e olharmos os outros povos, nós um povo de viajantes, de emigrantes, de promotores de intercâmbio de culturas, de ciência e de tecnologia.
Como exemplos, basta lembrar o discurso extasiado de Pêro Vaz de Caminha perante a bondade dos índios do Brasil ou a escrita maravilhada de Fernão Mendes Pinto ao contemplar as formas de vida, os hábitos, a religião e as cortes do oriente. E o patrono desta casa, Francisco da Holanda, tal como Camões, Damião de Góis e tantos outros que se tornaram paradigmas do homem humanista, nas artes e nas ciências.
Pelo contrário, quando nos fechámos e olhámos os outros como estrangeiros, estrangeirados ou imigrantes incómodos, caímos no “reino cadaveroso”, de que já falava Ribeiro Sanches no século XVIII, ou no “reino da estupidez” ironizado por Jorge de Sena.
Infelizmente hoje também se ouvem vozes de um nacionalismo decadente e fatalista, de um isolacionismo xenófobo e populista, marcadas pelo horror ao diferente, pela incapacidade de olhar e de aceitar o outro.
Informar e formar são, pois, as duas linhas de força educativas que integram o domínio dos conteúdos e simultaneamente o domínio das competências e dos comportamentos – conformes aos quatro pilares da educação do Relatório Delors:
aprender a
saber
saber fazer
viver juntos
ser
E ao explicitar estes saberes, estou já a falar do segundo grande desafio para cumprir a Europa pela educação e pela formação: a coesão social.
Uma escola multicultural, pluralista e democrática, acolhedora e amiga, diversificada nos recursos e nas formas de aprendizagem, certamente educa para a cidadania nacional e europeia e, necessariamente, para a cidadania mundial.
O terceiro desafio é o da competitividade e criação de emprego.
No projecto social europeu, a competitividade articula-se com a solidariedade. Aliás, esta é um dos seis valores estruturantes da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que vai fazer parte integrante da Constituição Europeia (dignidade, liberdade, igualdade, cidadania e justiça).
Para que ambas se cumpram, a escola tem de afirmar uma cultura de exigência e de qualidade, fazendo compreender aos seus alunos que, num mundo globalizado, na Europa de que fazemos parte, estas competências são pressupostos do passaporte de cidadania. Que, a oportunidade de aprender não pode ser desperdiçada, sob pena de quem o fizer se transformar num desajustado ou mesmo num excluído.
O esforço, a responsabilidade, o empenhamento, o compromisso negociado e aceite são as palavras de ordem que devem orientar a relação pedagógica. Lembro aqui o recente apelo do Presidente Jorge Sampaio ao visitar a Noruega.
Sublinharia ainda a importância de os professores assumirem o seu papel de orientadores, reflectindo sobre uma realidade nacional estatisticamente verificada: os nossos jovens cada vez menos escolhem as vias científicas. É uma notícia do Expresso deste fim de semana que, sob o título “Os jovens rejeitam a ciência”, transcreve estatísticas do Eurostat: entre os anos de 1998 e 2001, a procura de cursos nas áreas científicas pelos jovens portugueses diminuiu 4%.
É preciso que os jovens portugueses sejam atraídos pela Ciência.
Em contrapartida positiva, e na perspectiva de uma política de géneros, Portugal apresenta um número de jovens doutoradas – sub 30 – que nos localiza num lugar confortável no ranking europeu.
A arca de competências da dimensão europeia da educação prevê ainda uma outra aprendizagem indispensável – a aprendizagem das línguas. Saber pensar, saber comunicar oralmente e por escrito, saber defender as suas convicções, para dirimir conflitos e encontrar consensos, são competências que se exprimem, em primeiro lugar, na língua materna e depois em outras línguas, pelo menos mais duas segundo o já referido Livro Branco. E faço aqui um destaque para a importância desta componente que são as línguas como factores de identidade, de coesão e de competitividade: as línguas abrem caminhos.
Dominar a própria língua nas suas vertentes práticas e funcionais, mas também e fundamentalmente nos seus cambiantes de subjectividade, constitui uma competência a que se chega pela prática da leitura e da escrita e pelo fruir dos textos literários, nacionais ou estrangeiros, desde que em boas traduções.
Insisto no conhecimento da literatura. Tal como as ciências, também a literatura deve tornar-se motivo de atracção para os jovens.
Dominar línguas estrangeiras permite uma maior mobilidade, faculta a comunicação e o conhecimento do outro, ajuda a reforçar a compreensão e a tolerância entre pessoas nascidas em geografias linguísticas e culturais diversas da nossa.
Entre as línguas estrangeiras, impõe-se pragmaticamente a língua inglesa, actualmente uma língua franca mundial. Porém, a pluralidade das línguas que são veículos da pluralidade das culturas é mais um património europeu a salvaguardar contra a hegemonia e a homogeneização de uma língua franca, de comunicação meramente pragmática, uma língua instrumental, afastada da sua matriz, quase reduzida uma língua sem alma.
Porque as línguas têm alma, uma alma que é preciso descobrir e cultivar, como Vergílio Ferreira nos disse da língua portuguesa, numa frase já tornada clássica: “Da minha língua vê-se o mar”.
Finalmente, referiria o quarto desafio do Livro Branco “Cumprir a Europa pela Educação e pela Formação”: a sociedade da informação e do conhecimento, também eleito como prioridade em Maio de 2000, no Conselho Europeu de Lisboa, na chamada “Estratégia de Lisboa”.
A sociedade da informação e do conhecimento altera o paradigma tradicional da transmissão do saber, substituindo as formas verticais de transmissão por formas horizontais de cooperação e por métodos transversais de comunicação entre os que sabem mais e os menos experientes. Mobiliza, entre outros recursos, o potencial extraordinário das novas tecnologias da informação e da comunicação, tornados ferramentas normais de trabalho.
Pela sua natureza, este paradigma reflecte-se inevitavelmente na renovação dos métodos escolares e na organização da relação pedagógica.
Igualmente, quebra os ciclos de vida tradicionais que demarcavam o tempo de estudo do tempo da vida activa, introduzindo o conceito de educação ao longo de toda a vida.
A sociedade da informação e do conhecimento pressupõe ainda o conceito de redes de conhecimento que sustentem um espaço educativo partilhado.
Disse Jean Monet, um dos pais da Europa, no fim da sua vida: “Se tivesse de recomeçar, começaria pela educação e pela cultura”. Com efeito, a redução da Europa a um ideal de riqueza material, de bem-estar pelo consumo, não se coaduna com a herança que recebemos da história nem com o projecto dos pais fundadores da União Europeia.
Penso que está aqui, na frase de Jean Monet, a resposta à interrogação que constitui o tema deste encontro: O futuro da Europa, que prioridades ?