E ao percorrer a cidade do Porto sentimos especialmente o apelo do património cultural como realidade viva, como presença forte de uma memória longa de quantos nos antecederam. A expressão “Daqui Houve Nome Portugal” tem uma ressonância muito própria. Há dias foi inaugurada em Madrid no Centro Rainha Sofia uma inolvidável exposição em que o eixo de gravidade é Fernando Pessoa, mas nada compreenderíamos se não fossemos introduzidos pelo simbolismo de António Carneiro no tríptico «Vida» – e pela invocação da muito portuense «Renascença Portuguesa». E a palavra “renascença” traz-nos a capacidade eternamente renovadora de uma memória viva. Mesmo para entender o modernismo, precisamos de compreender as raízes, que nos levam proximamente a Sampaio Bruno e a Teixeira de Pascoaes – e mais atrás a toda a tradição dos privilégios municipais da nossa única cidade-estado, à Revolução liberal, à vitória de D. Pedro. Dir-se-á que aqui encontramos com nitidez a demonstração de que etimologicamente a ideia de património relaciona-se com o serviço (múnus) do que recebemos de nossos antepassados (patres). Perante a torre dos Clérigos, invocamos a memória de Nasoni e a sua capacidade encantatória. Diante da Sé somos levados aos tempos mais antigos, às origens visigóticas, à presúria de Vímara Peres até à recordação de Sophia do Bispo do Porto, D. António: «Na cidade do Porto há muito granito / Entre névoas sombras e cintilações / A cidade parece firme e inexpugnável / E sólida – mas habitada / Por súbitos clarões de profecia / Junto ao rio em cujo verde se espelham as visões. // Assim quando eu entrava no Paço do Bispo / E passava a mão sobre a pedra rugosa / O paço me parecia fortaleza / Porém a fortaleza não era / Os grossos muros de pedra caiada / Nem os limites de pedra nem a escada / De largos degraus de granito / Nem o peso frio das coisas inertes que emanava / Fortaleza era o homem – o Bispo – / Alto e direito firme como torre…». E se falo de Sophia não posso esquecer Ruben A., fiel cultor da memória e do património vivo, desde a genial «Torre da Barbela» até à lembrança de D. Pedro V – «o primeiro homem moderno que houve em Portugal».
Para proteger o património cultural urge cuidarmos do ensino da História e curarmos dos monumentos, dos documentos, das tradições, das artes, das paisagens. Tratamos de património material e imaterial, de paisagens, de vivências, sempre em diálogo com a criação contemporânea. E a atenção e o cuidado exigidos pelas Convenções do Conselho da Europa, como a de Faro (sobre o valor do património na sociedade contemporânea, de outubro de 2005), obrigam a entender este Ano como oportunidade para lançar bases que permitam sermos mais exigentes no conhecimento e na aprendizagem, bem como na missão essencial de não deixarmos ao abandono o que herdámos.
Um recente inquérito do Eurobarómetro revelou que somos os melhores no orgulho histórico e os piores quanto a visitar os museus e a participar em iniciativas culturais. Perante esta verificação, temos de encarar o Ano Europeu com uma forte aposta na Educação e nas escolas. E é indispensável ter uma política cultural que promova ativamente a defesa e o conhecimento do património construído e imaterial, as paisagens e as tradições, salvaguarde a qualidade das cidades… Eis por que razão toda a sociedade civil tem de ser mobilizada, do mesmo modo que os Estados têm de assegurar planeamento estratégico, definindo prioridades transversais para o desenvolvimento. Exige-se participação ativa de todos, sustentabilidade social e ambiental, medidas contra a especulação urbana e imobiliária e envolvimento dos melhores especialistas em nome da inovação e do espírito científico. De nada valerá a multiplicação de iniciativas avulsas e sem consequência. Temos de dar a este Ano Europeu um sentido que ultrapasse o pendor comemorativo e as iniciativas passageiras – daí a necessária ligação entre as áreas da educação, da ciência e da cultura. Só com um envolvimento efetivo das escolas, através dos estudantes, das famílias e da sociedade e com melhor formação de educadores e professores poderemos ir além da superficialidade.
Guilherme d’Oliveira Martins, in Jornal de Notícias