VOZ CRÍTICA, ATENÇÃO DESPERTA
Conheci-o como cidadão e como historiador, sempre voz crítica e atenção desperta – e deste modo nos tornámos amigos. Um dia, lançou-me o desafio – havia que encontrar e publicar as lições de Afonso Costa na Universidade de Coimbra, por ocasião dos cem anos da República. Aceitei a proposta, já que se tratava de matéria que não era estranha na minha vida universitária. Não sabia eu em que me iria meter. Mas compromisso era compromisso, e não descansei enquanto não encontrei a versão completa das lições. Fui mantendo Romero Magalhães ao corrente das minhas dificuldades. Afinal, ainda que as lições fossem citadas nas principais bibliografias, o certo é que a sebenta não constava de nenhuma das bibliotecas da rede pública. Ou seja, as lições foram citadas durante muitos anos sem que houvesse alguém a olhar sequer para elas. Finalmente, como explico na introdução ao livro que finalmente se tornou possível, graças à busca persistente de Judite Cavaleiro Paixão, às pistas dadas por Jorge Alarcão, um dia que nos encontrámos em Coimbra (eu deveria pesquisar nos manuscritos da Biblioteca Geral, já que se tratava de uma sebenta – mas esta estava truncada), e à milagrosa aparição na biblioteca pessoal de Luís Bigotte Chorão (sem que ele suspeitasse que o volume que tinha era único), chegámos a bom porto e a sugestão do meu amigo Joaquim Antero Romero Magalhães pôde ser cumprida. Assim a Imprensa Nacional publicou os Apontamentos das Preleções do Dr. Afonso Costa sobre Ciência Económica e Direito Económico Português, correspondentes ao ano letivo de 1896-97, inseridos na Biblioteca Republicana (2015).
UMA VIDA DE CIDADÃO ESTUDIOSO
Ao longo da vida, fomo-nos encontrando, por boas razões. Conheci-o em andanças políticas – como deputado constituinte, como Secretário de Estado da Orientação Pedagógica – por motivos históricos, na Comissão dos Descobrimentos e por razões afetivas, pela admiração por seu pai, o Doutor Joaquim Magalhães, professor de minha mãe no Liceu de Faro, com quem tive o gosto de conversar longamente nas ruas da capital algarvia, e até pelas nossas afinidades eletivas relativamente a Antero de Quental. Importa não esquecer que o nome próprio de Joaquim Antero se deveu ao facto de ter nascido exatamente na data do centenário do nascimento do autor dos “Sonetos”, 18 de abril de 1942. Com o pai e o filho tive o grato prazer de recordar esta circunstância feliz de calendário. Nasceu em Loulé, estudou no Liceu de Faro, onde seu pai seria Reitor, e rumou para Coimbra, primeiro para o curso de Direito e logo no fim do primeiro ano inscreveu-se na Faculdade de Letras, em Histórico-Filosóficas. Durante a crise académica teve papel ativo, sendo Presidente da Associação Académica de Coimbra em 1964-65, bem como do TEUC – Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. A sua tese de licenciatura foi sobre o Algarve Económico do século XVI, constituindo uma referência inovadora, hoje essencial para a compreensão da história económica portuguesa. Doutorou-se em 1984, sendo fundamental na afirmação da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Pode, aliás, dizer-se que Romero Magalhães dividiu o seu labor cívico e científico entre Coimbra e o Algarve. Foi desde cedo um grande defensor da criação da Universidade do Algarve, tendo tido nela uma colaboração científica e pedagógica da maior relevância. A sua biografia é muito rica, não sendo possível ser-se exaustivo. Foi professor convidado na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, na Universidade S. Paulo, e em Yale. Em 1993, colaborou no terceiro volume da História de Portugal de José Mattoso. Foi diretor da revista Oceanos, e em 2009 publicou a obra Vem aí a República! 1906-1910. Com Manuel Viegas Guerreiro deu à estampa duas obras essenciais sobre o Algarve no Século XVI – a Corografia do Reino do Algarve, escrita em 1577 por Frei João de S. José e História do Reino do Algarve, da autoria de Henrique Fernandes Sarrão. Em 1999, foi nomeado como comissário-geral da Comissão dos Descobrimentos até 2002, tendo feito parte da Comissão Consultiva das Comemorações do Centenário da República de 2009 a 2011.
A MELHOR HISTORIOGRAFIA
A recente reedição de O Algarve Económico durante o Século XVI pela nova editora algarvia “Sul, Sol, Sal” é um acontecimento assinalável. Foi sobre isso que conversámos, a última vez que nos vimos, em Loulé, no Convento Espírito Santo, a assinalar os 25 anos da revista do Arquivo Municipal de Loulé – “Al’-Ulyá”. E falámos das “Atas da Vereação de Loulé dos séculos XIV-XV”, agora à disposição dos estudiosos graças ao seu labor científico. Se no estudo sobre o Algarve Económico deparamos com um grande historiador, sentimos também a influência de Magalhães Godinho. E a abrir a nova edição, podemos ler: “Era o verão de 1964. Em Albufeira passava férias Vitorino Magalhães Godinho, não há muito afastado de professor da Universidade Técnica de Lisboa por opositor ao regime (1962). Nem por isso deixava de ser o mais prestigiado historiador português. Tendo lido alguns dos seus trabalhos (…) entendi que valia a pena procura-lo para que orientasse a minha dissertação de licenciatura”. O jovem foi então procura-lo, o mestre acolheu-o com “lanheza e boa disposição”. E aqueles foram uns dias de praia inesquecíveis. O estudante tinha ideias ambiciosas, mas o experiente professor indicou como tema adequado o da Economia algarvia – até partindo da citada Corografia de 1577. Assim se desenvolveu o trabalho, com a orientação formal de Salvador Dias Arnaut, mas a condução de Magalhães Godinho. As vicissitudes da investigação arquivística foram diversas – desde a consulta (mais fácil) da documentação de Loulé, graças à confiança de Eduardo Delgado Pinto, então presidente da Câmara, às milhentas dificuldades na Torre do Tombo, apesar da preciosa ajuda de zelosos funcionários e de A. H. Oliveira Marques, que conhecia bem o Fundo Antigo. Mas a lição era recebida “em casa de Magalhães Godinho, onde o ouvia e apresentava as dificuldades que sentia e onde como resposta saía com braçadas de livros que tinha que ler porque mais devia e ainda havia muito para trabalhar”. Hoje, confessa, talvez tivesse havido excessiva influência de Braudel, mas a panóplia de autores considerados (não esqueçamos Albert Silbert), a orientação do mestre e as qualidades do autor permitem considerar que o resultado é importante, para a compreensão duma economia que correspondia, na prática, a uma península da Andaluzia, com polos em Lagos, Faro e Tavira, que a lógica atlântica afastará do Mediterrâneo. O trabalho vale por ser “escorado em documentos de arquivo, alguns nunca utilizados, como os livros de vereações da Câmara de Loulé ou os livros das Misericórdias de Lagos, Tavira e da Biblioteca Municipal de Faro”. É essa matéria-prima que concede originalidade à obra e que permite corrigir tantos lugares comuns que persistiam. Em suma, relido agora o livro mantém o maior interesse – a população, a paisagem, os cereais, o gado, as frutas, a pesca, as indústrias, o comércio e a sociedade permitem-nos compreender o ontem e o hoje. Orlando Ribeiro, Oliveira Marques, Aníbal de Almeida e Ruben Andresen Leitão fizeram justos elogios. E basta ler tudo para ficarmos cientes de que lidamos com a melhor historiografia.
Guilherme d’Oliveira Martins
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