A Vida dos Livros

“Notre-Dame de Paris” de Victor Hugo

Livro escrito como um grito de alerta contra a degradação do monumento e o risco da sua destruição. A obra deve ser revisitada quando há dias presenciámos o trágico incêndio.

SUBLIME E MAJESTOSA
Se a Catedral de Notre-Dame era sublime e majestosa, o jovem Victor Hugo (1802-1885) não podia deixar de se indignar, ao lado do Abbé Gregoire, contra o vandalismo, “perante a degradação e as mutilações de todo o tipo que os homens e a passagem do tempo infligiram a este venerável monumento”. A publicação do romance constituiu o detonador de uma grande campanha, que culminaria em julho de 1845, com a aprovação de uma importante decisão no sentido do restauro e conservação da catedral, cuja concretização se deveu ao arquiteto Eugène Viollet-Le Duc (1814-1879). Victor Hugo escreveu o seu romance quando ainda não tinha trinta anos e foi inspirado por Walter Scott e pelas referências do romantismo. A história concebida pelo romancista situa-se na cidade de Paris, no ano de 1482, e é protagonizada pela própria Catedral e por um enredo centrado em Esmeralda, jovem cigana que dançava na praça fronteira à Catedral de Notre-Dame, no arcediago Claudio Frollo, que se deixa atrair pela beleza da bailarina e em Quasimodo, um homem disforme que vivia na catedral, onde fora abandonado em criança. O arcediago pede a Quasimodo que rapte a jovem, mas Esmeralda é salva por um grupo de soldados, comandado pelo capitão Phoebus de Châteaupers, por quem se deixa envolver amorosamente. Apesar de comprometido com Fleur de Lis, Phoebus fica seduzido pela cigana e marca um encontro para um local recôndito. Claudio Frollo surpreende-os, porém, nesse encontro e mata o capitão, apunhalando-o. Num sórdido processo de chantagem, Esmeralda é acusada de assassinato, mas recusa entregar-se a Frollo, ainda que essa fosse a única forma de escapar à pena capital. No momento terrível da execução, no átrio da catedral, aparece Quasimodo, que também ama a bailarina cigana, tomando-a nos braços e levando-a para dentro do templo, onde estaria protegida, segundo as leis da cidade. Quasimodo passa a noite a cuidar de Esmeralda. Contudo um grupo de amigos de Esmeralda vem libertá-la, forçando a entrada da Catedral. Quasimodo defende sozinho a igreja, com o que dispõe: pedras, barras de ferro, madeira e chumbo derretido. Mas Frollo aproveita-se do tumulto para fugir com Esmeralda, que resiste. Furioso com esta recusa, o arcediago entrega a jovem a uma velha considerada louca, que vivia no “buraco dos ratos”. Ao invés de lhe fazer mal, a velha reconhece em Esmeralda a sua própria filha e a poupa-a. Mas esta não consegue desfrutar de uma paz muito longa. Os guardas da cidade encontram-na e encaminham-na novamente para o lugar da execução, na praça da catedral. Do alto da Notre Dame, Quasimodo e Claudio Frollo assistem à execução. Quasimodo, louco de desespero, atira o clérigo do alto da torre e desaparece para sempre. Muito tempo depois, ao ser aberto o ossário de Montfaucon, local onde Esmeralda foi sepultada, foram encontrados dois esqueletos abraçados; um deles, com uma visível deformação…

DEFENDER O PATRIMÓNIO CULTURAL
Haveria que preservar o património medieval e daí a escolha da Notre-Dame, sobretudo porque nesse tempo a Catedral estava ameaçada pelo vandalismo e pelos projetos de renovação da cidade. O grande sucesso do livro permitirá lançar a celebridade do seu jovem autor e suscitar a tomada de consciência para a necessidade absoluta do restauro desse património cultural de valor incalculável. Se lermos a literatura desse tempo, fácil é de verificar como Victor Hugo se tornou o grande defensor da Catedral, como coração da cidade de Paris. Michelet disse mesmo que, desejando falar da Notre-Dame, tinha de reconhecer que Victor Hugo definiu uma “marca de leão” para o monumento, a ponto de ninguém mais poder tocar-lhe, já que construiu ao lado da velha catedral uma verdadeira catedral de poesia, “tão firme como os fundamentos da outra, tão alta como as suas torres”. Também Nerval escreveu no incerto ano de 1830: “A Notre-Dame é bem antiga, mas vê-la-emos talvez enterrar Paris, a cidade que a viu nascer”. E imagina as pessoas daqui a mil anos a virem contemplar o monumento, relendo a obra de Hugo. Théophile Gautier (em 1838) em “La Comédie de la Mort” invoca a glória desse lugar que « permite alargar a alma ». E Paul Claudel, em “Ma Conversion” (1913), considera, porém, que Hugo de certo modo tira espiritualidade à Catedral – fazendo dela cenário de um romance cheio de paixões mundanas. Foi na Catedral de Notre-Dame, em lugar que perfeitamente se conhece, que ocorreu a célebre conversão religiosa do poeta, em 25 de dezembro de 1886, com 18 anos, tocado por uma “revelação inefável”. Também Charles Péguy, no célebre poema sobre a Esperança, tão justamente invocado por João Bénard da Costa, enumera os santos padroeiros de Paris esculpidos nos portais da Catedral. Não devendo esquecer-se ainda Louis Aragon, em “Paris 42” e em “Aurélien”, que identifica a Notre-Dame, ela mesma, como “catedral de poesia”.

UMA HISTÓRIA CONTRA A INDIFERENÇA
Mas a história da Notre-Dame está cheia de vicissitudes – que começam antes do século XII, quando foi decidido edificá-la, uma vez que está construída num campo com profundas raízes histórico-religiosas, gaulesas, romanas, merovíngias. Sem cuidar duma existência medieval muito rica, lembremo-nos apenas da história recente. Em 1793, em plena Revolução Francesa, vinte oito estátuas representando os reis de Judá, que ornavam a fachada, foram decapitadas. Ainda na Revolução, a Catedral foi fugazmente consagrada como Templo da Razão durante a Convenção, voltando a ter uso religioso no Consulado, após a assinatura em 1801 da Concordata com o Papa Pio VII. Como se vê no célebre quadro de Jacques Louis David, aí tem lugar a sagração de Napoleão como Imperador dos franceses. Mas, sendo um tempo de incertezas, o muito jovem Victor-Hugo em 1825 dirá: “há duas coisas num edifício, o seu uso e a sua beleza: o seu uso pertence ao proprietário; a sua beleza a todos, a vós, a mim, a nós”. E é a partir daqui que empreende uma guerra contra os “demolidores”, que se preparavam para sacrificar essa joia insubstituível. E é neste ponto que Victor-Hugo, à maneira romântica, transforma a Catedral em personagem, tornando-a verdadeiro exemplo de um património comum dos franceses. Com o tempo, viria a ser reconhecida como Património da Humanidade, pela UNESCO – sendo naturalmente Património comum europeu, de acordo com os objetivos da Convenção de Faro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea. E o exemplo da Notre-Dame é pioneiro. Na sequência da campanha do jovem Hugo, referência maior do romantismo europeu, Prosper Merimée (1803-1870) é nomeado Inspetor-Geral dos Monumentos Históricos e o arquiteto Eugène Viollet-le-Duc dirige as obras de restauro e reconstrução da Notre-Dame a partir de 1843, durante a monarquia de julho. As orientações do arquiteto não são isentas de crítica, mas assentam num pensamento baseado na necessidade de valorizar o Património Cultural (que entre nós é partilhado por Gerrett e Herculano). Aumenta o número de gárgulas, com exuberância decorativa, nasce o pináculo de madeira coberta de chumbo, que agora ficou destruído – e define-se um novo cânon para a salvaguarda do património. Mas a relação política da França para com a Catedral vai ser ambígua. É certo que a valorização da Notre-Dame se insere no ambicioso plano urbanístico de Haussmann. Napoleão III casa-se na Catedral em 1853 com Eugénia de Montijo, mas a III República vai ignorar o monumento, que apesar de tudo admira, mas de que desconfia ao mesmo tempo. Mesmo a sociedade laica respeita, contudo, o lugar de memória – que lembra as raízes mais profundas e ricas da identidade nacional. O general Charles De Gaulle na célebre jornada de 26 de agosto de 1944, na libertação de Paris, fez celebrar uma cerimónia religiosa na Notre-Dame, na condição de não ser presidida pelo então Cardeal Arcebispo de Paris, Emmanuel Suhard, dadas as suas simpatias colaboracionistas. De Gaulle e Mitterrand terão as suas exéquias na Catedral de Notre-Dame, o que constitui uma exceção. No caso de François Mitterrand, só as cerimónias oficiais aí tiveram lugar, distinguindo as esferas pública e privada. E Françoise Giroud disse: “houve qualquer coisa de extraordinário no facto de o único discurso pronunciado ao longo desses dias de luto ter sido a homília do Cardeal Lustiger, como se a República não tivesse outros meios para honrar os seus grandes mortos senão o de os confiar à Igreja”. Porque decerto pesou o lugar de memória… Notre-Dame está, assim, bem presente na memória de todos – a sua reconstrução constitui um dever de fidelidade à História e à Cultura…

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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