UM DIÁLOGO EXTRAORDINÁRIO
Paulina Chiziane, em diálogo com Ana Sousa Dias, numa tarde de sábado na Fundação Gulbenkian, deixou fascinado o público presente, numa sala cheia, apesar da concorrência com as múltiplas iniciativas do Dia Internacional dos Museus. Numa cadência serena e afirmativa, próxima e generosa, fez questão de ligar o seu testemunho pessoal a muitas das causas em que está envolvida. E perante a pergunta da interlocutora sobre se se iria concretizar o anúncio feito em tempos sobre a despedida de romancista, ficou claro para os seus leitores que tudo dependeria de continuar a ter estórias para contar e causas para defender. Os temas não faltam e o entusiasmo não parece esmorecer. E o que está em causa são pessoas concretas, os seus dramas, e nunca certezas fechadas. Paulina queixa-se, porém, das múltiplas solicitações e diz desejar descansar, uma vez regressando a Moçambique. Depois de ter recebido o Prémio Camões, os convites sucederam-se a um ritmo intenso. E, como ficou demonstrado, quanto mais possibilidades houver de a ouvir ou de a ler, mais motivos haverá para desejarmos poder contar com a sua humanidade e as suas esperanças. Em dado passo do celebrado “Niketche – Uma História de Poligamia”, Prémio José Craveirinha (2003), ouvimos: “Desperto na vã esperança de receber uma mão cheia de carinho, mas o sol deixou-me e partiu. O meu amor é fugidio como a sombra do sol. Sou uma mulher derrotada, tenho as asas quebradas. Derrotada? Não. Nunca combati. Depus as armas muito antes de as empunhar. Sempre me entreguei nas mãos da vida. Do destino. (…) No meu rio, os antepassados não dançam batuques nas noites da lua. (…) Meu Deus ajuda-me a descobrir a alma e a força do meu rio. Para fazer as águas correr, os moinhos girar, a natureza vibrar…” Em cada palavra está a necessidade de encontrar a luminosidade e a escuridão da vida. E quantas vezes, como lembrou, as danças, os batuques, mesmo nas circunstâncias dramáticas constituem o modo de responder e de prevenir com ânimo às ameaças tremendas da servidão, da violência ou da indiferença.
ROMANCISTA PIONEIRA
“Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a escrever um romance (Balada de Amor ao Vento, 1990), mas eu afirmo: sou contadora de estórias e não romancista. Escrevo livros com muitas estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte”. E naquela tarde recordou a experiência relatada em A Voz do Cárcere (2021), livro escrito com Dionísio Bahule. São experiências de mulheres e homens, profundas e dolorosas. “Muitas vezes falamos de violência doméstica com exemplos imaginários. Poucas vezes falamos de violência com exemplos concretos. Este livro dá-nos essa visão real do nosso quotidiano”. E Paulina Chiziane acrescenta: “A prisão é um mundo dentro de outro mundo que necessitamos compreender. O planeta terra está representado nas nossas prisões”. Ser escritor não é apenas saber ouvir, mas pormo-nos no lugar dos outros. Corresponder a esta proposta do Serviço Nacional Penitenciário de Moçambique foi uma experiência dura, mas abriu horizontes, para a compreensão do drama humano. E a escritora exemplifica com os casos concretos e a chegada em muitas situações a becos sem saída. Como encarar a situação do jovem, com menos de vinte anos, condenado a uma pena com a duração da sua idade? O que será da sua vida quando acabar a condenação, depois de passado o tempo que poderia ser o melhor? Os motivos são muito diversos, mas ficamos com o coração nas mãos perante uma vida destruída prematuramente. “Uma das lições que aprendi das mulheres que estão nas prisões é que elas, primeiro, não são ouvidas; e nós que não estamos na prisão, que estamos em liberdade, às vezes inventamos campanhas para sensibilização, para o combate da violência doméstica e outros males, mas não ouvimos quem sofreu de uma forma direta ou numa prisão”. E a escritora propõe que se ensine às mulheres qual a sua verdadeira força, para que aprendam a geri-la sem esperar que essa força aflore no momento fatal. Quando lemos Ventos do Apocalipse (1993) encontramos a guerra, a humilhação, o ódio, a miséria, o sofrimento, mas também a superstição, e fica-nos a dúvida essencial sobre tantos motivos para a incompreensão. Dois povos confrontam-se, os mananga e os macuácua, contudo estão colocados entre dois fogos e não sabem quem os defende e quem os ataca. O cego destino define a tragédia que escapa à capacidade de cada um poder encontrar a paz ou libertar-se. Mas como entender tão estranha contradição? Paulina Chiziane procura ir ao encontro das tradições. As raízes da palavra encerram a possibilidade de perceber o destino. Para compreender um povo é preciso conhecer os seus mitos, as suas tradições, os seus fundamentos antigos. E, tendo aprendido a língua portuguesa na escola, lamenta não saber escrever na sua língua materna. A verdade é que a voz feminina tem especial importância. Está sempre próxima das origens. Não por acaso, a UNESCO vem insistindo na Educação para todos, com especial ênfase para as mulheres, uma vez que o cuidado e a transmissão dos saberes favorecem o respeito mútuo e a multiplicação de conhecimentos para uma melhor compreensão.
OUVIR AS MULHERES
A experiência de ouvir as mulheres, levou a escritora a afirmar que Deus é mulher e é negra. “Há um Deus invisível que dizem ter criado tudo, mas na terra é a mulher que vela pela sobrevivência de todas as espécies. E esse Deus é uma mulher. E é negra, por uma razão muito simples: se o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, então Deus é muito parecido comigo. É negra e é mulher”. Com o fio condutor da inesgotável contadora de estórias, para quem as palavras são como as nossas cerejas, umas a seguir às outras, os temas e os exemplos foram sucedendo, naturalmente, para contentamento daquele auditório, de onde ninguém arredou pé. E as palmas irrompiam de cada vez que o pensamento se interrompia. E, se houvesse, dúvidas, Paulina confessou ter ficado surpreendida com a atribuição do prémio Camões, mas ao mesmo tempo orgulhosa por ter mantido os pés bem assentes na terra, sendo assim reconhecida no seu culto da língua portuguesa, como idioma de várias culturas e de diversas estórias. Quando o meu amigo Zeferino Coelho me falou da vinda de Paulina Chiziane à Gulbenkian não tive dúvidas sobre o sucesso anunciado. E as palavras que pudemos ouvir ou o diálogo que pudemos estabelecer tornou-se uma conversa que foi um inesgotável encontro.
Guilherme d’Oliveira Martins
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