Maria de Lourdes Modesto, que agora nos deixa, é na cultura portuguesa uma referência pioneira que ombreia com grandes nomes como João da Matta, Bulhão Pato ou Paulo Plantier, mas também com Berta Rosa Limpo, Maria Isabel Campos Henriques e Angela Telles da Silva (Isalita).
Se falamos do pioneirismo de Maria de Lourdes Modesto é porque se nota na sua ação uma preocupação de ligação renovadora da culinária e da gastronomia entre tradição, modernidade e acessibilidade à vida moderna. Da sociedade rural ao tempo urbano houve que compreender a força da mudança. Os gastrónomos mais antigos procuraram seguir as receitas multisseculares, enquanto o papel pedagógico na televisão permitiu abrir novas perspetivas compatíveis com uma sociologia familiar totalmente diferente. E assim o património cultural imaterial da culinária pôde preservar a qualidade, a utilização de matérias-primas acessíveis, uma nova gestão do tempo e a preservação de uma originalidade portuguesa.
A obra muito rica de Maria de Lourdes Modesto é uma marca de equilíbrio entre a criatividade, a inovação e o respeito pela identidade cultural atlântica e mediterrânea, de norte a sul, minhota, transmontana, beirã, ribatejana, alentejana, algarvia ou das ilhas atlânticas, sem esquecer a riqueza de uma cultura pelo mundo repartida, castiça, cosmopolita, enriquecida pela aventura do achamento de novos mundos.
O Centro Nacional de Cultura não esquece uma amiga de sempre, para quem a cultura fazia parte do seu existir. Homenageamo-la e apresentamos condolências a familiares e amigos.
Morreu Maria de Lourdes Modesto, a “diva” da cozinha portuguesa
Nunca, nem antes nem depois dela, alguém fez tanto pelo aprofundar do nosso conhecimento da cozinha popular portuguesa. A “diva”, como Miguel Esteves Cardoso gostava de lhe chamar, morreu esta terça-feira aos 92 anos.
Tinha um sorriso doce e desarmante e era com ele a iluminar-lhe o rosto, numa espécie de inocência atrevida, que dizia sempre exatamente aquilo que pensava. E todos a ouviam atentamente e a respeitavam como a grande referência da cozinha portuguesa que era. Maria de Lourdes Modesto, autora, entre outros, de Cozinha Tradicional Portuguesa, morreu esta terça-feira, aos 92 anos, confirmou ao PÚBLICO fonte próxima da família. Estava hospitalizada há alguns dias.
Nos últimos dois anos os problemas de saúde começaram a impedi-la de dar resposta a todas as solicitações que recebia, mas, até essa altura, mantinha-se ativa e atenta como sempre, com uma curiosidade enorme, que nunca perdeu, e a vontade de acompanhar o que estava a acontecer no universo gastronómico português – fosse para fazer um elogio sentido ou uma crítica construtiva.
Nascida a 1 de Junho de 1930, em Beja, entrou pela primeira vez na vida – e nas casas – dos portugueses em 1958, num programa de televisão no qual ensinava receitas às donas de casa. Era então uma jovem despachada e bem-disposta, de olhos rasgados que lhe davam um ar exótico, e que tinha um talento natural para comunicar.
Foi “descoberta” por causa de uma reportagem televisiva sobre uma peça de teatro de Molière que estava a fazer no Liceu Francês, onde deu aulas. Chamou a atenção e convidaram-na a fazer televisão.
O universo acolhia generosamente a jovem que, ainda adolescente em Beja, sonhava ir para Lisboa porque no Alentejo “não via saída”. O curso de Economia Doméstica seria o seu passaporte para a capital, onde ficou inicialmente num lar da Mocidade Portuguesa. Quando terminou, foi precisamente a disciplina de Economia Doméstica que começou a ensinar no Liceu Francês, que procurava “uma pessoa com abertura”, um perfil como o dela, que na altura “usava rabo-de-cavalo, sabrinas e era toda modernaça”.
“Eu nunca tinha visto televisão, só nos filmes em que os artistas tinham uma”, contou ao PÚBLICO numa entrevista em 2014. “Eu disse que não tinha preparação para fazer um programa de cultura, e eles insistiram. Tive muitas dúvidas, levei um bom bocado a dizer que sim, até que um dia disse: ‘Só se for alguma coisa para as mulheres’”.
No primeiro programa mostrou como se comia uma alcachofra e a partir daí nunca mais largou a cozinha. Descontraída – embora numa outra entrevista, de 2020, tivesse confessado que “toda a gente pensava” que tinha “um grande à vontade”, quando, na realidade, “tinha pavor” –, conquistou rapidamente um público feminino fiel, que gostava de a ver na televisão a explicar como se preparavam os mais diversos produtos, então ainda com uma clara influência francesa.
Não tentou criar um estilo. “Fui ao natural”, dizia. “Nessa altura, usavam-se os olhos muito maquilhados, era o tempo da Audrey Hepburn. Tínhamos um maquilhador que se dizia que tinha vindo de Hollywood e ele queria fazer-me o traço dos olhos muito grande, e eu dizia ‘não sou artista, sou professora’, não queria aquele exagero. Ele fez queixa de mim e eu tive de levar o traço e pronto.”
A presença na televisão levou a que fosse convidada pela Fima-Lever (hoje Unilever), para a qual escreveu receitas assinadas como Francine Dupré, e que lhe deu “todas as condições”. Aprendia cada vez mais, fez estágios no estrangeiro, conheceu grandes cozinheiros – um dos que mais admirava era o mestre João Ribeiro –, ganhou autoconfiança.
“Fazia muita cozinha francesa porque a cozinha francesa está codificada”, explicava. Mas, a par da pressão para não usar produtos caros, sentia também que a vontade dos espectadores era verem mais cozinha portuguesa no programa. “E quando eu fazia qualquer coisa que conhecia muito bem, coisas que a minha mãe fazia, vinham depois não sei quantas pessoas — eram muitas, na altura eu tinha muita correspondência porque era única e passava a seguir ao Telejornal — e cada um dizia que a sua receita é que era, que a prima, avó, mãe, faziam um ensopado diferente, porque há realmente várias maneiras de fazer uma coisa que tem o mesmo nome.”
O momento decisivo
Foi assim que surgiu o momento decisivo da sua carreira. “Quando eu vi aquelas receitas todas de ensopados de borrego, que todos eram verdadeiros, pensei: ‘Como é que vou resolver este problema?’ E, como a televisão me tirava o sono, pensei que podíamos fazer um concurso para as pessoas me mandarem as receitas. Propus à televisão fazer esse concurso, que estava ligado ao SNI [Secretariado Nacional de Informação], que era quem tratava a arte popular, arranjou-se um júri e cada mês uma província mandava as receitas.” Foi o embrião daquele que continua a ser o mais importante livro de referência da cozinha portuguesa: o Cozinha Tradicional Portuguesa.
Recebeu receitas de todo o país, fez um aturado trabalho de recolha, compilação e análise. Não podia incluir tudo no livro, mas guardou todas as receitas e há poucos anos fez o trabalho de digitalização de tudo, confiando esse espólio à Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal. “Toucinhos-do-céu, não sei quantos apareceram lá em cima no Minho, e ainda por cima fazem-se em todo o país. Mas lembro-me que os bolinhos do Alentejo eram uns 290 e tal. É uma quantidade muito grande”, recordava na entrevista de 2014.
Quando o livro foi publicado “estava numa efervescência, cheia de medo”. Mas as críticas foram muito positivas e até hoje é presença obrigatória nas bibliotecas de todos os que se interessam por cozinha – aliás, um conselho que Maria de Lourdes Modesto não se cansava de dar a todos os chefs de cozinha era o de que “lessem mais”, que se cultivassem, porque não se entende a cozinha (e não se faz boa cozinha) sem se entender a cultura dos povos, sem se entender o mundo. “É preciso saber distinguir o alho-francês [poireau, em francês] do detective Poirot”, costumava dizer.
Ela nunca parou de querer conhecer. Guardiã fiel da cozinha tradicional, isso não a impedia de se interessar por uma cozinha mais de vanguarda, desde que os chefs fossem talentosos. “Não sou intransigente, mas não admito que em cima do bacalhau à Gomes de Sá se ponham pickles”, dizia. Tal como não admitia a “obscenidade” que um dia a levou a escrever um texto indignado, denunciando “um pastel de bacalhau a esvair-se em queijo serra da Estrela […], duas das mais queridas e conseguidas especificidades da nossa gastronomia numa pornográfica e ridícula figura.”
A paixão pela cozinha tradicional também não a impedia – pelo contrário – de olhar para além dos pratos, para os produtos, para a ciência ligada a eles e à forma de os cozinhar, algo que se esforçou também por divulgar e fazer chegar ao conhecimento de todos, mesmo depois de ter deixado a televisão, através dos seus livros, das suas intervenções públicas, e das suas crónicas, reunidas em Sabores com Histórias, e que são pequenas pérolas reveladoras do seu sentido de humor.
Fazia o que a divertia e aceitava desafios quando percebia que ia tirar daí prazer. Foi o que aconteceu quando Miguel Esteves Cardoso lhe propôs que escrevesse para a Preguiça, a revista do jornal O Independente, em 2000. A insegurança insistia em aparecer, e foi assim também com os seus inícios na escrita em jornais. “Achava que não tinha densidade. Tinha sempre medo que o que escrevesse não fosse correto, não fosse oportuno”, confidenciou à Fugas. Mas, precisamente porque houve pessoas que a aconselharam a não o fazer, decidiu que faria, sim. “Foi quando o Miguel começou a chamar-me diva”, recordava com carinho.
Chegou a pensar ter um restaurante com Amália Rodrigues, mas esse foi um projeto que nunca concretizou. Gostava das coisas boas da vida, disse-nos na última entrevista que deu, precisamente quando falávamos do seu sentido de humor. “O sentido de humor faz parte da boa vida, é fundamental para o relacionamento entre as pessoas e eu gosto muito de pessoas”.
Gostava de pessoas e de sabores que lhe traziam novas descobertas e lhe alimentavam a curiosidade. De uma certa sopa de cação, preparada pelo chef António Nobre, disse uma vez que era “poesia pura”. Viveu os últimos anos recebendo alguns amigos na sua casa do Estoril (e com, aqui e ali, um prato surpresa confeccionado por alguns dos chefs que mais admirava), frente a um jardim cheio de flores. Um dia tinha-nos enviado um e-mail a explicar como a encontrar: “A minha casa tem estrelícias e estarei à sua espera”. Hoje as estrelícias ficaram mais sós.
por Alexandra Prado Coelho, in Público | 19 de julho de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público