O que acrescentar?
por Leonor Xavier
Mais de vinte anos depois da conversa, em que me perguntou se eu seria sua biógrafa, é-me difícil fazer uma reflexão objetiva sobre a personalidade, o mérito, o percurso da mulher notável que é Maria Barroso. Na sua personalidade, vejo a liberdade como princípio de vida, a família como força e estrutura de carácter, a política como disciplina de comportamento, a fé como misteriosa e firme revelação em idade madura.
O que acrescentar que sobre ela não se saiba ou não tenha sido dito?
Mais do que factos da vida pública, são agora desejados os detalhes sobre a sua vida privada. Se discretamente atenuou a sua própria expressão, para mais ser conhecida por primeira-dama e mulher de Mário Soares. Se foi essa a sua vontade, em vez de se distinguir pela sua intervenção e ação nas causas em que se tem envolvido, desde sempre. Perguntam-me como é a organização dos seus dias. Se é uma mulher independente. Se determina os rituais da casa e da família. Se tem uma relação próxima com os netos. Se tem uma agenda própria. E mais e mais. Parecem ser mais importantes estas minúcias do que o seu percurso de vida. O ambiente em que nasceu, os estudos, os amigos, o teatro, o amor, a política.
Talvez sejam menos conhecidos os seus concretos gestos de atenção aos outros, mais ainda aos mais simples, aos anónimos cidadãos que chegam perto, a dar-lhe uma palavra, a ouvir-lhe a voz. Poderão ser lembrados os seus tons de feminilidade, a sua maneira clássica de vestir, a determinação no estilo, a harmonia nas cores, a escolha do pequeno enfeite que sempre usa, a combinar com as variadas circunstâncias em que está presente. Na sua expressão pública, Maria Barroso diz a importância da família, na ordenação da sociedade. E na vida privada fala da casa dos pais, das brincadeiras com os irmãos. Lembra cenários de juventude à roda da mesa de jantar, repartidas então as fases difíceis de todos e de cada um. Forte e claro é o discurso amoroso constante, sempre que fala do seu amor. As prisões, os exílios, as separações, os medos. A coragem, o atrevimento, são nela justos motivos de orgulho.
Não tem temperamento para silêncio ou omissão, nas questões políticas e sociais de atualidade ela afirma-se. Quando tem uma causa a defender, fala o quanto pode, debate, imagina, propõe ideias, dá sugestões, defende opiniões, abre hipóteses de solução. Sabe que os problemas que apresenta pertencem, preocupam e dizem respeito a todos e a todas. Podendo ser intolerante e até radical quando discorda, ela sente a compaixão, pratica a solidariedade, a doçura. É reconhecido o seu estilo, o seu jeito, a sua maneira de ser na fantástica capacidade de comunicação que mantém com as instituições, os poderes, os cidadãos.
Na sua postura, vejo a marca de formação que recebeu como atriz nos anos 1940 da sua juventude, quando no Teatro Nacional pertenceu à Companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro, surpreendendo pelo talento que a poderia ter consagrado como uma das notáveis da sua geração. Aplaudida então pelo público e pela crítica, para sempre lhe ficou a clareza na maneira de falar, a certa medida das frases, a colocação de pausas e pontos finais, o momento justo da respiração. As costas direitas, o olhar determinado, a expressão dos olhos a confirmar o que diz e como diz.
Sem desânimo nem pausas ou ausências, Maria Barroso tem tido perto de duzentas intervenções públicas em média, por ano. Umas largas dezenas de idas e vindas entre Lisboa e as mais variadas geografias do país não a cansam. Uma vintena de viagens anuais, acrescentando aos destinos europeus as mais variadas rotas de longa distância estimulam-na. Para que a solidariedade cresça no seu curso para a transformação dos males deste mundo, faz conferências nas escolas secundárias e nas universidades, promove debates e congressos, anima causas e ações. A violência na televisão e na imprensa, em especial, tem sido motivo de textos e pronunciamentos. Assim como a família, a educação, a violência, a assistência aos flagelados, às vítimas de seca ou de chuva, têm sido suas razões de ser. Pela defesa dos direitos humanos e pela cooperação inspira-se para campanhas a lançar, cresce em energias, tem disponibilidade absoluta. Sempre que procura ajudas, apoios, parcerias, raramente recebe recusas, porque a urgência de realizar é total e as soluções possíveis existem.
Nestes dias sombrios, releio o que Maria Barroso me disse e escrevi, no último capítulo da sua história: “O meu reencontro com a fé deu-me uma serenidade muito grande para olhar todo o percurso da minha vida, despedir-me deste mundo sem receio nem angústia.”
publicado in Diário de Notícias, 29 de janeiro de 2015
Fotografia © Reinaldo Rodrigues/Globalimagens
Fotografia © Reinaldo Rodrigues/Globalimagens