Abecedário da Cultura da Língua Portuguesa

M. Mirandês

Falo de espíritos bem vivos. Os falantes distribuem-se principalmente por uma área de 550 quilómetros quadrados, conhecida como Terra de Miranda, formada pelo concelho de Miranda do Douro e as freguesias de Angueira e Vilar Seco no concelho de Vimioso. Também se deve incluir o território de Caçarelhos. A língua mirandesa é o nome oficial que recebe o asturo-leonês persistente em território português. O mirandês tem três subdialetos (central ou normal, setentrional ou raiano, meridional ou sendinês), dispondo de um dicionário, gramática e ortografia próprios; os seus falantes são em maior parte bilíngues ou multilingues. O mirandês é, desde 1999, a segunda língua oficial de Portugal. A preservação da língua mirandesa deve-se à geografia e ao isolamento das Terras de Miranda, sede episcopal. Os rios e as cordilheiras são fatores cruciais para a criação de uma “fronteira linguística”. O rio Sabor isolou a área da influência da língua portuguesa. Outro fator foi a proximidade de Espanha, com o comércio centrado no turismo espanhol. A cidade recebe espanhóis do antigo Reino de Leão, que muitas vezes falam asturiano. Assim, o mirandês chegou aos nossos dias, defendido também pelos espanhóis de fala asturiana. Havia muitos anos que o mirandês não era falado no coração da comarca, Miranda do Douro, mas, nos últimos anos, a deslocação das pessoas das aldeias para a cidade trouxe o mirandês de volta. As aldeias preservaram melhor a língua antiga. São naturais os entraves, como se nota em “Lição de Mirandês: You falo como bós i bós nun falais como you” de Manuela Barros Ferreira, onde é evidente a natural fragilidade da língua mirandesa face ao português. Não se fala o mirandês quando os alunos estão em situações formais, como por exemplo na relação com o professor. Então a língua portuguesa prevalece. A língua mirandesa é reservada para contextos familiares, do quotidiano ou mesmo de extrema intimidade.

Eis o exemplo de uma frase em mirandês com a respetiva tradução em português, num texto de Amadeu Ferreira, um dos grandes divulgadores da língua mirandesa. «Muitas lhénguas ténen proua de ls sous pergaminos antigos, de la lhiteratura screbida hai cientos d’anhos i de scritores hai muito afamados, hoije bandeiras dessas lhénguas. Mas outras hai que nun puoden tener proua de nada desso, cumo ye l causo de la lhéngua mirandesa». E eis a versão portuguesa. «Muitas línguas têm orgulho dos seus pergaminhos antigos, da literatura escrita há centenas de anos e de escritores muito famosos, hoje bandeiras dessas línguas. Mas há outras que não podem ter orgulho de nada disso, como é o caso da língua mirandesa».

Apresentamos ainda o texto do projeto lei de reconhecimento dos direitos linguísticos da comunidade mirandesa, apresentado em setembro de 1998 pelo deputado Júlio Meirinhos aprovado pelo Parlamento e com expressão constitucional. «La Lhéngua Mirandesa, doce cumo ua meligrana, guapa i capechana, nun yê de onte, detrasdonte ou trasdontonte mas cunta cun uito séclos de eijistência. Sien se subreponer a la “lhéngua fidalga i grabe” l Pertués, yê tan nobre cumo eilha ou outra qualquiêra. Hoije recebiu bida nuôba.

Saliu de l absedo i de l cenceinho an que bibiu tantos anhos. Deixou de s’acrucar, znudou-se de la bargonha, ampimponou-se para, assi, poder bolar, strebolar i çcampar l probenir. Agarrou l ranhadeiro para abibar l lhume d l’alma i l sangre dun cuôrpo bien sano. Chena de proua, abriu la puôrta de la sue priêça de casa, puso fincones ne l sou ser, saliu pa las ourriêtas i preinadas. Lhibre, cumo l reoxenhor i la chelubrina, yá puôde cantar, yá se puôde afirmar. A la par de l Pertués, a partir de hoije, yê lhuç de Miranda, lhuç de Pertual», Lei nº 7/99 de 29 de janeiro

Depois de José Leite de Vasconcelos, Amadeu Ferreira(1950-2015, Sendim, Miranda do Douro) foi o grande estudioso e divulgador do mirandês nos últimos anos, sendo jurista, escritor e tradutor de uma vasta obra em português e em mirandês, em nome próprio e com os pseudónimos de Francisco Niebro, Marcus Miranda e Fonso Roixo.

Traduziu para a língua mirandesa obras como Os Quatro EvangelhosOs Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, Mensagem, de Fernando Pessoa, e obras de Horácio, Vergílio e Catulo, bem como dois volumes de Astérix entre muitos outros. Foi colaborador, sobretudo em mirandês, de diversos meios de comunicação social, nomeadamente do Jornal Nordeste, do Mensageiro de Bragança, do Diário de Trás-os-Montes, do Público e da rádio Mirandum FM. Publicou mais de três mil textos, quase exclusivamente literários, em blogues como Fuontes de l AireCumo Quien Bai de Camino e Froles Mirandesas e CNC. Autor de obras científicas e literárias, em poesia e em prosa. Entre muitas outras, publicou, nas áreas das Ciências Jurídicas e Direito dos Valores Mobiliários; em poesia, Cebadeiros; e em prosa, Cuntas de Tiu Jouquin.

Há ainda os Pauliteiros de Miranda, praticantes da dança guerreira céltica, característica destas Terras, designada de dança dos paus,  representativa de momentos históricos locais, acompanhada com os sons da gaita-de-foles, caixa e bombo, com a particularidade de ser dançada por oito homens (mais recentemente também por mulheres) que vestem saia bordada e camisa de linho, um colete de pardo, botas de cabedal, meias de lã  e chapéu enfeitado com flores e finalmente por dois paus (palos) com os quais os dançadores fazem uma série de diferentes passos e movimentos coordenados. E neste folhetim de fantasmas, a propósito do Mirandês, invoco um texto de Orlando Ribeiro sobre o seu Mestre José Leite de Vasconcelos, que antevia com «os olhos do espírito de que se apagam lentamente os últimos fulgores». «Num pedestal de tosco granito», vislumbrava «não uma figura enroupada no traje académico, mas um velho meão mas desempenado, de cabeça coberta e barba intonsa, de chapéu de viagem, abordado ao bastão de jornada, mostrando aos novos – ele, eterno caminheiro – os rumos científicos da “boa Terra Lusitana”, de que esclareceu as origens nas pedras incompletas, na língua como expressão da vida coletiva, na multiplicidade dos textos e dos falares rústicos, sobre o pedaço de terra que nos coube neste fim da Europa, onde o povo, considerado no conjunto das classes da Nação, afirmou o seu direito de ser livre, de pensar e sentir a seu modo e a seu jeito e até contribuir, com as luzes de Espíritos de que o Mestre foi o mais poderoso e operoso para o progresso geral do conhecimento humano. Só assim a lenda de José Leite de Vasconcelos se consagrará na História, a que há mais de um século ofereceu as primícias do seu pensamento».

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