Helena Vaz da Silva faz-nos muita falta, cinco anos depois de nos ter deixado nesse estranho dia 12 de Agosto. O seu espírito, a sua iniciativa e a sua inteligência continuam, no entanto, a germinar e o Centro Nacional de Cultura, nas suas múltiplas actividades, tem procurado ser fiel a esse entusiasmo, a essa energia e a essa força anímica, que continua a produzir efeitos. Há um ano, em S. Petersburgo, quando, na apresentação das Jornadas Europeias do Património, no cenário magnífico dessa cidade fantástica, ao lado de José Maria Ballester, Helena foi lembrada, como inspiradora do novo conceito e do novo trabalho que o Conselho da Europa está a lançar a propósito do valor do património cultural na sociedade contemporânea, todos sentimos que o acto que estava a ter lugar era da mais elementar justiça. E desejamos que a nova Convenção de Faro, de Outubro de 2005, que inspirou possa em breve ter as ratificações necessárias para entrar em vigor, tornando o património cultural e histórico um factor de entendimento, de respeito e de paz.
Como jornalista da cultura, no seu trabalho pioneiro no “Expresso”, na RTP e na ANOP, como animadora de iniciativas e alternativas, como Presidente da Comissão Nacional da UNESCO, como deputada no Parlamento Europeu (com a capacidade de abrir horizontes para além das fronteiras políticas), como co-fundadora com Lorde Yehudi Menuhin de ambiciosíssimos projectos de educação pela arte, de combate à exclusão e de diálogo entre civilizações, soube sempre lançar as bases de uma nova visão da cultura. Federico Mayor fez da direcção-geral da UNESCO a alavanca impulsionadora do diálogo das civilizações, da cultura da paz, de uma audaciosa ligação entre a educação, a cultura, a ciência e a comunicação e teve sempre Helena Vaz da Silva a seu lado nesse combate ainda muito incompleto.
E o certo é que o património histórico não pode ser visto como uma realidade estática ou retrospectiva. Confunde-se com a vida, a cada passo, porque o património material e imaterial surgiu para as pessoas e para o mundo da vida, e como tal deve ser visto e interpretado. Também a memória, em lugar do ressentimento e da indiferença, tem de se tornar um apelo vivo à força criadora, à capacidade de inovar e ao diálogo, sempre tenso, entre a herança e a inovação. Trata-se de poder acrescentar valor ao que nos foi legado pelas gerações que nos antecederam – e quando falamos de cultura estamos a referir o que faz a diferença entre as comunidades humanas, o que permite distinguir a qualidade e a mediocridade nos níveis de desenvolvimento humano. Além disso, a diversidade cultural (de que tanto se fala, mas nem sempre correctamente) não pode ser confundida com um soma de excepções ou com um lugar onde ninguém verdadeiramente se encontra.
A aventura, a viagem, a descoberta, a peregrinação, mas também a tradição, a hospitalidade ou a coragem inovadora, fazem parte da mais rica das vocações humanas, que pode levar ao encontro e à compreensão do outro e do diferente. Um monumento, um roteiro, um museu, uma exposição, os costumes, as tradições, a culinária, o modo de receber, as línguas, os dialectos, as palavras diferentes para exprimir a riqueza do mundo que nos cerca, tudo isso faz parte da herança e do património, material e imaterial, de que somos legatários. No fundo, o património histórico corresponde sempre a uma realidade triangular em que se encontram o passado, o presente e o futuro. E Miguel Torga, cujo centenário hoje celebramos, soube como poucos entender este facto. As dimensões arqueológica e historiográfica envolvem várias camadas de vestígios, de testemunhos e de influências, que convergem no que nós próprios apreendemos nos dias de hoje e na nossa vida, projectando para o futuro as dimensões diacrónica e sincrónica do tempo (“o futuro do passado”, que falam Vieira e Pessoa).
E é aqui que a memória tem de ocupar o lugar da indiferença e do esquecimento, recordando as virtudes e os erros e invocando as audácias e os exemplos de quem nos antecedeu. Por isso, importa evitar, a um tempo, o excesso e o defeito da memória, para que aprendamos o sentido humano do respeito mútuo entre os diferentes outros, nossos contemporâneos ou nossos antepassados. Longe do “politicamente correcto” de um multiculturalismo pobre, trata-se, como a Helena defendia, de pôr em contacto as várias culturas e de fazer funcionar o efeito do cadinho (“melting-pot”), num intercâmbio que permita o enriquecimento dos vários interlocutores, em vez do proteccionismo das excepções. Trilhar o esteio do “humanismo universalista” (Jaime Cortesão) e da “dignidade do ser” (Sophia de Mello Breyner) eis o que se nos pede. E, como diria Hans Küng, dos tempos da “Concilium”, que HVS animou: “não haverá paz no mundo sem paz e sem diálogo entre as religiões e as culturas”. O que preocupou sempre Helena foi, afinal, o facto de hoje se viver “de portas e coração trancado, assestado para o êxito, a imagem, o agradável, o curto prazo”. Para ela importaria, ao invés, perscrutar os “espaços outros”, os “sinais” e os “profetas de hoje” e criar uma “corrente de resistência” – única forma de resistir à “desintegração, que flui por debaixo do ruidoso tumulto da vulgaridade”. Ruidoso tumulto…