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Largo Barão de Quintela

Publicamos aqui o texto de Raquel Henriques da Silva, publicado no jornal Público (em 14 de Maio), sobre a construção de um parque de estacionamente no Largo Barão de Quintela


“Foi finalmente aprovado, em sessão de câmara recente, o novo parque de estacionamento do Largo Barão de Quintela, entre a Rua do Alecrim e a Rua das Flores, escassas dezenas de metros abaixo das bocas de saída do parque de estacionamento do Largo Camões. Trata-se de mais um elo de concretização do “plano dos dez” (parques de estacionamento) nos centros históricos de Lisboa, vindo do início dos anos de 1990.


Vale a pena recordar dois ou três momentos que conduziram à decisão presente: o primeiro projecto, elaborado creio que pelos serviços da autarquia, foi chumbado pelo Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar), cujo parecer positivo é indispensável porque o espaço a esventrar se encontra na área de protecção do Palácio Quintela-Farrobo, classificado como monumento nacional. Colaborante com as desastradas políticas patrimoniais da Câmara de Lisboa, o Ippar sugeriu que se entregasse o projecto a um arquitecto credível. Infelizmente assim foi feito, e o novo projecto, assinado pelo arquitecto muito credível Gonçalo Byrne, foi mesmo aprovado pelo Ippar, que, com o seu habitual gosto de dizer coisas, fez depender a sua aprovação final de pequenos acertos, nomeadamente o local para instalar o agora amovível monumento a Eça de Queiroz.


Por essa altura, exactamente Novembro de 2004 (muito tempo passado sobre o início da tragédia, mas os promotores sabem que é quase sempre uma questão de tempo e lidam filosoficamente com o facto), estava a funcionar o Conselho Científico para a Preparação da Candidatura da Baixa a Património da Humanidade, por mim presidido e integrado por Ana Tostões, Helena Ribeiro dos Santos, João Mascarenhas Mateus, José Sarmento de Matos, José Monterroso Teixeira e Walter Rossa. Nesse âmbito, elaborámos uma recomendação dirigida à vereadora do Urbanismo com cópia ao presidente do Ippar, alertando para o excepcional valor patrimonial do Largo Barão de Quintela, para os erros graves e reiterados das políticas de estacionamento no centro histórico e para o impacto negativo da obra prevista na candidatura que estava a ser preparada. Não tivemos resposta nem de um nem de outro mas, sinceramente, ficámos convencidos que, pelas habituais portas travessas, entre a ameaça e o conselho, tínhamos conseguido encravar o projecto.


Interessa agora, perante a tragédia anunciada, alertar, mais uma vez, para os claros valores patrimoniais do Largo Barão de Quintela. Começando pela História, recordo que aquele espaço público era, em 1790, propriedade privada do poderoso Barão de Quintela e futuro Conde de Farrobo. Acabado de erguer o seu palácio, ele decidiu oferecer à câmara o espaço fronteiro, com a condição de não ser construído para facilitar o acesso das carruagens ao pátio interior da sua casa.


Esta foi a razão de ser da interrupção da malha predial naquele ponto da Rua do Alecrim, enriquecendo-a, imagética e funcionalmente, com um sítio de paragem. Por razões diversas, o mesmo aconteceu, nesses anos de 1790, no Largo de S. Carlos (cujo terreno foi também cedido pelo mesmo poderoso barão) e, mais tarde, no Largo Camões (depois dos Marialva terem desistido de ali reconstruir o seu palácio destruído pelo terramoto), animando e romantizando o estrito urbanismo pombalino em que se inserem.


O largo tornar-se-ia um dos pontos referenciais da Lisboa oitocentista, quando o Chiado era o coração habitado e activo de Lisboa. O gosto romântico, que anunciara com antecipação, adquiriu discreta dimensão aurática quando, em 1903, ali foi colocada uma das mais belas esculturas públicas da época, da autoria de António Teixeira Lopes, homenageando Eça de Queiroz, logo após a sua morte, em 1900. Enquadrando o monumento, foi criado um pequeno jardim pitoresco, alargando, ao espaço do largo, a figura redonda do escritor e da sua nua “Verdade”. Este jogo subtil entre escalas e figuras geométricas levemente encaixadas (o largo é o círculo da estátua dentro do círculo, mais difuso, do jardim, dentro da quadra da arquitectura, impositiva mas aberta no declive das ruas do Alecrim e das Flores) é a marca intangível de um urbanismo de qualidade, capaz de absorver episódios sucessivos com extraordinária adaptabilidade.


Com a decadência do centro histórico, o Largo Barão de Quintela foi sendo empobrecido, ocupado, em metade da sua quadra, pelo descuidado parque de estacionamento dos bombeiros. Mesmo assim, ele está intacto nos seus valores pitorescos, constituindo memorial qualificado a um dos mais importantes portugueses do século XIX, e de sempre, que por ali viveu e escreveu, entre a Rua das Flores, o Hotel Bragança da Calçada do Ferragial, a Havaneza e a Bertrand do Chiado. Quem quiser, pode circular entre o seu corpo esculpido e o de Fernando Pessoa, passando, entre eles, pelo olhar alto de Camões, e, deste modo, através da escultura, evocar a literatura, que é talvez a mais verdadeira e mais digna História de Portugal.


O parque que agora se anuncia é um torpe e inútil crime. Para instalar 270 lugares de estacionamento (em cinco níveis de esventramento impiedoso do miolo instável de Lisboa) vai-se partir a Rua das Flores com mais entradas de túneis; alterar a disposição do largo que, em vez de olhar um palácio monumento nacional, passará a orientar-se para o edifício dos bombeiros; deslocar o monumento a Eça de Queiroz, tornando-o um bibelot ridículo, sem escala nem arrimo; destruir uma singela mancha de jardim, substituindo-a pela limpeza arrogante do paisagismo contemporâneo.


Lisboa ficará imediatamente mais pobre (com a pobreza confrangedora do novo riquismo) e a circulação na Rua do Alecrim (que costumo designar por uma das mais belas ruas da cidade) tornar-se-á mais confusa e mais lenta (basta recordar as filas nocturnas para o acesso ao parque do Largo Camões).


Acontecimentos como este demonstram que os autarcas, que elegemos, continuam a não saber governar a cidade histórica, e os organismos da administração central continuam a não saber cuidar e promover o património que são supostos servir. Incapazes de honrar a memória, uns e outros vêem a cidade do futuro como uma feira de vaidades cacofónica, em que a arquitectura é um conjunto de nomes sonantes e as ruas a acumulação de carros privados, cada vez mais potentes, mais novos e estacionáveis no corpo massacrado de Lisboa.


Perante tão graves verdades, muitos dos responsáveis irão dizer, em falso luto, que concordam comigo. O problema é que tudo está aprovado e há direitos adquiridos. Esta resposta será inaceitável. O Estado não é entidade em si mas instrumento das dinâmicas sociais e dos imperativos da nação. Perante situações como esta, o que o Estado tem a fazer é simples: dizer não. Depois, reunir com os interesses eventualmente lesados (?), e encontrar alternativas credíveis.


Termino com uma declaração pessoal. Sendo membro do Comissariado da Baixa-Chiado, presidido pela vereadora Maria José Nogueira Pinto para elaborar e apresentar, até Setembro, as linhas fundamentais do futuro daquele centro histórico, demitir-me-ei, caso este projecto não seja sepultado como deve ser. Com tal atitude pessoal, não comprometerei os esperançosos trabalhos do Comissariado mas darei um sinal de cidadania ferida.”


Raquel Henriques da Silva
Professora universitária, membro do Comissariado da Baixa-Chiado


in Público, 14 de Maio de 2006

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