Na história do Centro Nacional de Cultura e em vésperas dos 75 anos, que é uma idade respeitável, é a primeira vez que contamos com dois Cardeais entre os nossos sócios efetivos (com D. Manuel Clemente) – devendo salientar-se que ambos se iniciaram no Centro ainda clérigos, quando não tinham qualquer outra dignidade eclesiástica. D. José Tolentino Mendonça foi no CNC sempre uma referência no diálogo com o mundo da cultura, muito para além das fronteiras religiosas. E há alguns anos quando homenageámos, na Capela do Rato, Lourdes Castro, desde a sua juventude muito cá de casa (designadamente com José Escada), lembrámos essa atitude fundamental do novo Cardeal – a de que a Arte e a Cultura têm sempre um sinal de Deus. E José Tolentino compreendeu-o sempre. E há dias, Paula Moura Pinheiro interpretava fielmente o sentimento de muitos dos seus amigos, de vários horizontes culturais, dizendo: “Espero que o padre Tolentino provoque o estremecimento na Santa Sé que sistematicamente provocou a nós que o ouvíamos pessoalmente na Capela do Rato durante tantos anos e tenha o mesmo fulgor revolucionário que sempre lhe conheci”. A jornalista lembrava a sua participação na comunidade da Capela do Rato, onde teve “por pastores padres maravilhosos”, considerando que “é impossível negar que o padre Tolentino tem características únicas” que o fazem “excecional”. “Ele tem uma espécie de acesso e quando começa a conversar ilumina-se e passa a pertencer a qualquer coisa, de outra dimensão, metafisica. É o que eu sinto quando o ouço”. E com que emoção recordamos com ele o espírito da revista “Concilium”, o Círculo do Humanismo Cristão, a Livraria Moraes, o MRAR – Movimento de Renovação da Arte Religiosa, que aqui vivemos, nas paredes que habitamos – Helena e Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Frei Mateus Peres O. P., Nuno Bragança, João de Almeida, Nuno Teotónio Pereira, Diogo Lino Pimentel, Freitas Leal e tantos outros… Quanto caminho percorrido? Quantas veredas trilhadas, contra ventos e marés?…
Importa, pois, lembrar a ação que desenvolveu nos meios culturais como poeta consagrado, que tem procurado abrir horizontes de diálogo com os meios intelectuais numa perspetiva de troca de ideias, de enriquecimento mútuo e de um melhor conhecimento das preocupações espirituais do mundo contemporâneo, a partir da laicidade, da liberdade religiosa, numa sociedade aberta e pluralista. Simbolicamente o novo Cardeal adotou como lema a frase “Olhai os lírios do campo” (Mt., 6, 28) e escolheu como símbolos os lírios, um elefante, e o Alfa e o Ómega da mensagem bíblica do Filho do Homem. O elefante representa a velha e mítica ligação dos portugueses a Roma, de que a célebre embaixada do Rei D. Manuel ao Papa Leão X em 1514 é uma indelével referência, enquanto os lírios representam a simplicidade da vida. A leitura de «Elogio da Sede» (Quetzal, 2018) permitiu-nos compreender melhor a alegria e a disponibilidade pessoal com base no entendimento da sede como “bem-aventurança que nos salva”. «Não é fácil reconhecer que se tem sede. Porque a sede é uma dor que se descobre pouco a pouco dentro de nós, por detrás das nossas habituais narrativas defensivas, asséticas ou idealizadas; é uma dor antiga que sem percebermos bem como encontramos reavivada, e tememos que nos enfraqueça; são feridas que nos custa encarar, quanto mais aceitar na confiança». Eis por que razão, o poeta nos põe de sobreaviso contra a indiferença, contra o encolher de ombros do relativismo. A liberdade religiosa e o encontro entre convicções obrigam a estarmos disponíveis para ouvir e para caminhar juntos, sendo capazes de nos colocarmos no lugar dos outros. Não pode haver diálogo na ignorância ou na suposição de que temos certezas acabadas e fechadas. Ao percorrermos as meditações, seguimos os capítulos, significativamente intitulados – Aprendizes do espanto, a ciência da sede, o perceber que se está sedento, a sede de nada que nos adoece, a sede de Jesus, as lágrimas que contam uma sede, o beber da própria sede, as formas do desejo, a escuta da sede das periferias, e a bem-aventurança da sede. Cada palavra, cada passo, devem ser considerados, cultivando o tempo, a reflexão e a atenção. E se alguns põem em causa o facto de o Papa Francisco apelar às periferias, como se estivesse a esquecer as centralidades, a verdade é que a centralidade da dignidade humana só pode ser compreendida se entendermos os limites, as dificuldades, as angústias. Quantas vezes nos sentimos perdidos e abandonados – são esses os momentos fundamentais para que temos de nos prevenir perante o risco de cairmos e de estarmos fortes para nos levantarmos. Mas se estamos demasiado seguros e certos, há qualquer coisa que falta na fé e na esperança e que empobrece o amor. Oiçamos: «Perguntamo-nos muitas vezes o que é a misericórdia. E a misericórdia não cabe numa definição. Não se pode dizer: “A misericórdia é isto”. Precisamos de espelhos para compreender a misericórdia. Ela tem de encarnar-se para que a possamos tocar. Misericórdia é compaixão, misericórdia é bondade, misericórdia é perdão, misericórdia é colocar-se no lugar do outro, misericórdia é levar o outro aos ombros, misericórdia é reconciliação profunda. É tudo isso. Mas é isso realizado também com um determinado estilo, que é o estilo do pai da parábola de Jesus. Não há misericórdia sem dádiva, sem doação. Aquele filho trazia tantas feridas, manifestas e escondidas, e precisava de ser curado com o bálsamo da misericórdia». E se falamos de dádiva, temos de ter presente a ideia de troca – dou e dás, encontramo-nos afinal na generosidade. No fundo, “Deus ama a vida e não desiste dela”. De que vida nos fala? Do quotidiano inesperado, em que podemos descobrir o outro que nos procura. Nos caminhos insondáveis temos de ser aprendizes do espanto. “O que nos salva é um excesso de amor, uma dádiva que vai para lá de todas as medidas”. Não, não estamos saciados – estamos sim cientes de uma sede que não se satisfaz imediatamente na nossa condição. Através do amor, do respeito e da dignidade vamo-nos saciando. Mas é a consciência dos limites que nos leva a entender que não estamos sós e que temos de estar atentos a quem nos chama, mesmo em silêncio… S. Paulo di-lo melhor que ninguém. A fé e a esperança passam. O amor e o cuidado ficam – e assim a sede é o desejo e o caminho para esse dia em que poderemos finalmente ver face a face… “Porque Deus não desiste de dizer a toda a vida – à nossa vida – que ela é querida e bem-aventurada. Essa é a sede de Deus”.
Um dia José Tolentino disse a Anabela Mota Ribeiro: «Detesto o moralismo. Penso que o moralismo falseia o encontro connosco próprios e com a humanidade. O que acontece aos outros acontece a cada um de nós. Dizia o cristianíssimo Dostoievski: “Somos responsáveis por tudo perante todos”. (…) A experiência do mal atravessa todas as vidas. Todos precisamos de ser salvos. (…) Somos mesquinhos, banais, egóticos, ressentidos. Se não tomamos consciência disso não conseguimos a transformação. A primeira condição da transformação é a nudez. Ser capaz de contar a sua verdade. Gosto muito da Flannery O’Connor (dizia o poeta), que é para mim, ao lado do Pasolini, uma mestra espiritual. Ela mostra um mundo que se diria monstruoso. De assassinos em série. De gente capaz de tudo. “Esse mundo somos nós”. Até que acontece o encontro com a graça. É esse encontro que transforma a nossa vida. Penso que não se pode dividir [a humanidade] entre homens bons e homens maus. (…) Há a experiência do mal, que é comum a todos, que nos atravessa, corrói, domina em tantos momentos». Quem somos afinal? Quem são os sedentos que se encontram connosco na dúvida e na incerteza? O filho pródigo e o seu irmão ressentido somos nós. S. Pedro a negar três vezes somos, de facto, nós. S. Tomé incrédulo ainda somos nós, muito mais vezes do que julgamos. Graham Greene quando se converteu escolheu o nome de Tomé, exatamente porque sabia que a fé e a incerteza se completam – enquanto paradoxalmente Mauriac num grito algo provocatório lembrava às avessas do Salmo 22: “Meu Deus, meu Deus porque não me abandonaste”. E Santa Teresa de Jesus alertava para a ingenuidade de supor que “as almas às quais Nosso Senhor se comunica, de uma maneira que se julgaria privilegiada, estejam contudo, asseguradas nisso de tal modo que nunca mais tenham necessidade de temer ou de chorar os seus pecados».
Guilherme d’Oliveira Martins