CULTURA COMO MEIO NATURAL
De facto, o grupo que criou a nova revista, como testemunhou João Bénard da Costa, tinha um certa consciência de que algo de novo se preparava nos meios culturais portugueses. E mais do que os caminhos novos e plurais, era a própria ideia de democracia que estava em causa, onze anos antes da sua consagração efetiva através do Movimento das Forças Armadas, em 25 de abril de 1974. A presença do jovem Jorge Sampaio era significativa. Dirigente estudantil de um movimento marcante, escreve na revista, com Jorge Santos, um texto emblemático “Em Torno da Universidade”, no qual afirmam: “uma vez que haviam tomado consciência do papel que tinham a desempenhar na vida nacional, uma vez que tinham bem presente as suas responsabilidades perante a Nação, uma vez ainda, que a Universidade deixara de ser o tal ‘vase clos’, a tal corporação hermética dos tempos passados, os estudantes passaram a ocupar-se dos seus problemas de uma forma que, frequentemente saindo do ‘casulo universitário’, atinge o plano da própria vida política do país. (…) Entraram decisivamente a preocupar-se com o problema do alargamento do ensino ao maior número possível de jovens; começaram a exigir sistemas de subvenção de estudos, de seguros sociais para estudantes, de assistência médica estudantil etc.”. Hoje, quase parece profética essa convergência de contributos diferentes no pensamento e na ação, e a verdade é que a história da revista “O Tempo e o Modo” é bem ilustrativa de como a democracia se preparava, abrindo horizontes, mobilizando ideias diferentes e até contraditórias. As heterodoxias contrapunham-se às ortodoxias e o resultado era a emergência do cadinho das ideias democráticas que se afirmava.
Se refiro este momento emblemático, faço-o para salientar como a cidadania política é algo que não se faz instantaneamente, nem com ilusões de certezas absolutas. Quando lemos a biografia modelar de José Pedro Castanheira, percebemos em Jorge Sampaio um caminho feito de tentativas e erros, mas de uma essencial coerência. E a vida política é apaixonante porque é de riscos extremos. O estudo da história política corresponde à análise de uma sucessão de êxitos e de naufrágios, de persistência e de recuperação, e é preciso haver essa clara consciência. Por isso, Mário Soares disse que só é vencido quem desiste de lutar. O exemplo de Jorge Sampaio é o de alguém que sempre compreendeu que a política tem de ser assumida com independência e sentido de serviço público. Os valores éticos e as causas da cidadania são essenciais, mais importantes do que o sucesso fácil e imediato. Brilhante advogado, jurisconsulto de mérito, defensor ativo dos direitos humanos com todas as consequências, como demonstrou internacionalmente quando esteve no Conselho da Europa, no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ainda hoje há quem recorde em Estrasburgo o período em que Jorge Sampaio se ocupou ativamente desses sempre complexos temas.
LIBERDADE AUTÊNTICA
Com uma apetência especial para as questões da criação cultural e da sensibilidade artística, deve dizer-se que o político foi moldado por essa especial ligação a essas questões. De facto, a liberdade autêntica constrói-se pela compreensão da complexidade, da capacidade criadora, da incerteza, da dúvida e do sentido crítico. Melómano conhecido, que gostaria de ter sido maestro, Jorge Sampaio amava os grandes autores e as suas obras musicais – Mozart, Beethoven, Chopin, Mahler, Schostakovich. Como leitor ativo de prosa e poesia, era ainda um amante da boa dramaturgia, e também um cultor da memória enquanto património vivo. Com sua Mãe falava indiferentemente em português e inglês – e a literatura e o jornalismo anglo-saxónicos eram-lhe familiares. Nascido de uma família com raízes muito antigas e arreigadas, em que os Bensaúdes, a diáspora e os Açores tinham uma marca forte de abertura, diversidade e apego à liberdade, a Cultura, ou a sensibilidade das artes, era para Jorge Sampaio um meio natural. Assim como, no texto de 1963, para o jovem que há pouco deixara os bancos da universidade ficava clara a necessidade de abertura de horizontes, em lugar da claustrofobia dos ambientes fechados, das soluções herméticas, essa abertura só seria possível se as liberdades fossem conquistadas, já que o valor da cultura obrigaria à democracia – numa ligação íntima entre cultura e liberdade. Daí que a identidade nacional só se enriqueceria de modo aberto, exigindo uma ligação entre cultura, educação e ciência. Afinal, haveria que compreender que “a educação é uma espécie de lugar geométrico de três grandes desígnios cívicos: desenvolvimento, democracia e emancipação individual.” (27.11.2002). Os avanços realizados nas aprendizagens foram importantes, mas não podem satisfazer-nos só por si, porque os progressos gerais não param, e porque a exigência de qualidade é permanente. O mesmo se diga da absoluta prioridade à ciência, a partir da internacionalização, do diálogo e cooperação com os principais centros mundiais. Daí Jorge Sampaio salientar “o papel absolutamente pioneiro que a Fundação Calouste Gulbenkian teve neste movimento de aproximação dos investigadores portugueses aos centros de excelência sediados no estrangeiro” (15.10.2002). De facto, é incindível o triângulo cultura, educação e ciência, obrigando a que a capacidade inovadora do artista permita compreender o impulso criador do cientista, e a afinação de um instrumento de precisão se assemelhe ao que permite ao instrumento musical dar maior fidelidade ao desejado pelo compositor.
O PATRIMÓNIO E A LÍNGUA
“O património histórico-cultural é por natureza diverso. Ele alimentou-se de uma tensão entre interno e externo, entre local e universal, entre elites e povo, entre exclusão e integração, entre uniformidade e alteridade. (…) Conservar é promover uma reaproximação. É, portanto, reinterpretar, de acordo com critérios e expectativas do presente. Finalmente porque a identidade de uma sociedade não é um dado imutável, é, isso sim, uma aquisição permanente, um processo continuo entre o passado e o desejo do futuro” (10.10.1996). As raízes históricas apenas podem ser entendidas pela compreensão deste movimento imparável – o que nos permitirá entender, no património imaterial, que “a língua que falamos não é apenas um veículo funcional e utilitário de comunicação, molda o que pensamos e o que sentimos, leva-nos ao mundo e traz-nos o mundo. A língua que falamos exige que a renovemos, que a recriemos, que a amemos. (…) Quando ouvimos falar o português nas vozes dos outros povos, sentimos que a nossa voz se amplia nessas vozes e que o futuro começa na língua que falamos” (6.12.2004). E assim uma cultura aberta e plural constitui-se fundamento da liberdade.
Guilherme d’Oliveira Martins
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