Já vimos, como Joãozinho das Perdizes invocou o pau de marmeleiro como disciplinador de conflitos e organizador da nação. É verdade que muito do palavreado usado na venda de Grijó correspondia mais a entusiasmo do que à realidade. Estamos no ano de 1868, data da publicação da “Morgadinha”. Os acontecimentos relatados situavam-se nos primórdios da política das Obras Públicas e dos melhoramentos de António Maria Fontes Pereira de Melo, no esteio do seu amigo Rodrigo da Fonseca. O certo é que havia desconfiança, pois a memória de Costa Cabral ainda estava viva. Daí a ambiguidade do discurso do brasileiro Eusébio Seabra. Não ficara esquecida a reação da Maria da Fonte e da Patuleia contra as papeletas da ladroeira, que eram as matrizes prediais. As bandeirolas temidas pelo morgado das perdizes eram reminiscências dessa memória, que não se apagava. Em Janeiro de 68, rebentou um motim de pequenos comerciantes e proprietários em nome da moralidade pública contra o novo imposto sobre o consumo. O jornal portuense “O Primeiro de Janeiro” nasceu deste movimento… Caiu o governo regenerador de Fontes e foi convidado o Duque de Loulé para constituir um novo executivo, mas rejeitou, seguiu-se a recusa do marquês de Sá da Bandeira e seria empossado António José de Ávila, futuro Duque d’Ávila e Bolama. O artífice deste sobressalto foi o Bispo de Viseu que aqui está representado com o seu pau de marmeleiro a fazer de bengala, para o que desse e viesse. Depois do golpe, acabou o imposto, nasceu o novo Partido Reformista, cujo programa era moralizar a nação, que durou pouco, até se fundir com os Históricos, criando o Partido Progressista. E o “Album das Glórias”, pela pena de João Rialto (Guilherme de Azevedo), conta esta deliciosa história: “Possuído do desânimo que assalta os bravos que no meio da feira parlamentar se sentem tolhidos… de leis para brandirem um arrocho, o reverendo bispo abismado do que apalpou e do que viu nas regiões do poder, voltou em breve às suas montanhas e à sua diocese como deve voltar um verdadeiro crente – “com o credo na boca!”. Se bem que desde então desça em longos intervalos das serranias para a política, a tribuna parlamentar deveu-lhe ainda (…) a frase mais sintética e mais expressiva de que se pode ufanar a loquela de um povo. No meio de uma discussão desorientada na aridez cerebral da Câmara Alta, no ponto culminante da contenda, o sr. Bispo pediu a palavra e bradou: – Sr. Presidente, anda qualquer coisa no ar! Os retóricos militantes riram desta exclamação, mas na verdade nunca tiveram outra que exprimisse de forma mais exata e mais nítida o estado mental da nossa sociedade, a obscuridade do seu ponto de vista, a incerteza dos seus destinos! «Anda qualquer coisa no ar!» Quer dizer: tapemos o nariz e esperemos. Ninguém sabe de que natureza é nem donde veio este cheiro; o que se percebe perfeitamente é que nas instituições existem miasmas que corrompem a atmosfera. O reverendo Bispo de Viseu pôde não ter grandes vistas políticas, mas ao menos mostra que tem ventas. Bem faz ele persistindo em não tomar o poder para continuar a tomar bom rapé!»… Assim tenhamos tanto faro.
Agostinho de Morais