O tempo longo sempre nos reserva inúmeras surpresas. Trata-se de procurar compreender os grandes movimentos, as sínteses fundamentais, para além dos elementos circunstanciais que variam no imediato. José Mattoso estudou o tema, à luz da moderna historiografia, procurando vê-lo com os olhos do nosso tempo – menos na lógica de uma determinação ou de um destino e mais na confluência entre múltiplos elementos estruturais e conjunturais. A consciência coletiva da nacionalidade corresponde, assim, a um processo longo e progressivo. Há uma cadeia de factos históricos cuja articulação conduz à maturidade do fenómeno nacional. “De facto, mais do que exaltar a Pátria, interessa-me (diz-nos José Mattoso) o relacionamento dos Portugueses uns com os outros”. E, após a investigação realizada, o historiador confessa que “a resposta do passado medieval, pelo menos a que ouvi, foi esta. Portugal é irredutível e simultaneamente uno e múltiplo. A História convida-nos a viver as incomodidades daí decorrentes e a tentar tirar delas algum partido”. Assim se exprime o autor da obra referencial contemporânea sobre as origens de Portugal (de 1096 a 1325) – Identificação de um País, (Estampa, 1985).
Para
compreendermos o período da formação de Portugal devemos não só ter
presente as raízes antigas, mas também a chave cronológica apresentada
por José Mattoso para o momento crucial da formação da nacionalidade,
onde encontramos seis períodos, ao longo dos quais vamos verificando a
consolidação gradual da identidade política social e cultural
portuguesa, enquanto realidade una e múltipla. No primeiro momento,
1096-1131, o poder condal começou a organizar-se à semelhança das
monarquias com o estabelecimento de uma relação direta e estável com a
aristocracia senhorial e as comunidades concelhias, criando-se uma nova
instância política que reunia os condados de Portucale e de Coimbra
(tendo este último sido aliado dos reinos muçulmanos desde as invasões
de Almançor – c. 938-1002; e governado pelo moçárabe Sisnando – Sisnando
Davidis, falecido em 1091). Entre 1131 e 1190, D. Afonso Henriques,
vencedor de D. Teresa em S. Mamede (1128), à frente dos barões
portucalenses, estabeleceu a sua sede estratégica em Coimbra e ampliou o
território português para mais do dobro, sofrendo, no entanto, a forte
pressão das invasões almorávidas, na tentativa de recuperação dos
territórios perdidos. De 1190 a 1223 houve a ocorrência da crise
económica em resultado dos maus anos agrícolas, tendo D. Afonso II
lançado medidas de centralização do poder real, com reforço da aliança
aos concelhos, opondo-se à influência fragmentária do alto clero e da
nobreza. Em relação ao período 1223-1248, houve uma fase muito difícil,
pelas repercussões de uma nova crise económica e da peste, pela eclosão
da guerra civil, caracterizada pela extrema fragilidade do poder de D.
Sancho II e pelas contradições no seio da nobreza senhorial.
Relativamente aos anos 1248-1279, D. Afonso III, o conde de Bolonha,
emergiu fortalecido da guerra civil e prosseguiu, com muita determinação
e sistematicamente, a ação centralizadora do Estado contra a afirmação
dos senhores da terra e do clero – ao lado dos concelhos -, completando a
conquista do território até ao Al-Gharb. Por fim, de 1279 a 1325,
desenvolveu-se a ação de D. Diniz, desde a continuidade centralizadora
do poder real e da fixação de fronteiras (Tratado de Alcanises, de 1297)
até ao reforço do poder militar e naval com a nomeação do genovês
Manuel Pessanha como Almirante das Armadas, passando pela adoção da
língua portuguesa na chancelaria, pela fundação da Universidade
Portuguesa (o Estudo Geral), pela afirmação da influência do Direito
Romano, pelo entendimento de que os habitantes do Reino são vassalos
naturais do rei, sem intermediações (como defendera já Afonso X), pela
proibição dos nobres armarem os cavaleiros vilãos dos concelhos ou ainda
pela criação da Bolsa de Mercadores e pela intensificação do comércio
com a Flandres, Inglaterra e França.
Através
deste caminho, de afirmação muito segura do Reino, fica bem explícito o
risco acrescido das missões cometidas aos Condes de Portucale na
conquista e consolidação de posições, em confronto direto com as forças
muçulmanas. E assim o Conde D. Henrique e os seus sucessores garantiram,
através da reunião dos poderes locais, um fator de segurança e de
continuidade com resultados positivos na consolidação do poder, de que
beneficiaram os reinos cristãos, em contraste com as divisões e o
descontentamento existentes sob o domínio almorávida… Importa lembrar,
aliás, que a criação do Condado Portucalense destinou-se “não só a criar
uma instância de comando militar capaz de fazer frente às investidas
almorávidas, que se tornaram especialmente perigosas nos anos de 1093 e
1094, mas também a vencer a resistência regional à autoridade de Afonso
VI. De facto, a entrega do condado a um francês da Borgonha, protegido
dos beneditinos de Cluny e a nomeação de vários bispos franceses, logo
de seguida, para as dioceses de Braga e de Coimbra, constituíram um
conjunto de medidas com propósitos políticos intimamente relacionados
entre si!” (p. 65). O sucesso militar e político do Conde veio criar uma
autoridade indiscutível que permitiu ao Reino de Portugal surgir ao
lado de Leão e Castela e de Aragão como protagonista na segunda vaga das
autonomias dos reinos cristãos. Recorde-se que a primeira tinha
ocorrido entre 950 e 1050 com Castela, Aragão e Navarra.
Para compreender a Reconquista cristã, importa considerar a influência moura ou árabe. Parta-se à descoberta dessas impressões digitais, e veja-se como Lisboa é uma cidade multifacetada, aberta e cosmopolita. Lisbûna tornou-se arabizada na sequência de um processo logo e complexo de oito séculos de presença árabe praticamente ininterrupta na cidade (714-1147). Trata-se de acompanhar a história da presença política árabe-muçulmana, desde o Emirato na órbita do Califado de Damasco (de 711 até 756), do Emirato independente de Córdova (756-929), do Califado de Córdova (929-1027), até aos primeiros reinos taifas, à decadência e à afirmação do Califado Almorávida (1028-1147). E foi este período de fragmentação que coincidiu com a “reconquista cristã” e que correspondeu à perda de influência do Al-Andalus, momentaneamente interrompido pela esperança almorávida (sobretudo aquando da Batalha de Zalaca, 1086), em que o Al-Andalus foi convertido em mera província sob domínio almorávida. Os cristãos assumiram, ainda que fugazmente o domínio de Lisbûna, mas depois perderam-no por cerca de quarenta anos. O retrato da influência é feito de muitas palavras e culturas. Veja-se o rol das palavras para designar as principais frutas da cidade: albaricoque (al-barqûk), alperce (al-barj), laranja (al-nâranj), limão (laymûn), romã (rumman), tâmara (tamrah) e figo (tîn). Atente-se ainda no arroz (al-ruzz) ou na celebérrima alface (al-hass), símbolo dos lisboetas… E os almocreves (al-mukkâb) e arrais (al-rais-s), moçárabes, mouros e mouriscos eram os que asseguravam o abastecimento da cidade. Os citadinos chamavam-lhes saloios (de çalaio, imposto pago sobre o pão cozido). Os saloios chamavam ao da cidade “alfacinhas”, por estes cultivarem nas hortas citadinas alfaces. A grande cidade do século XVI, definitivamente destruída em 1755, baseou-se na antiga Lisbûna moçárabe, sobretudo na zona a leste do esteiro do Tejo, dentro da cerca moura, em redor da Alcáçova (al-qasbâ, o Castelo de S. Jorge), com uma grande mesquita e uma importante zona urbana (Alfama ou Al-hamma) – para além da zona de Al-cântara (palavra que significa a ponte). Como é bem de ver, tudo soa a muito familiar, já que ainda hoje usamos muitas dessas palavras e dessas designações. A cidade foi marcada pelo campo e pelo mar, havia agricultores e pescadores, produção de fruta e cereais e construção de navios (na Ribeira das Naus). E não pode deixar de se recordar, sob a invocação do afamado geógrafo de Ceuta Al-Idrîsî, do final do século XI, a Lenda dos Aventureiros de Lisbûna, segundo a qual teria havido navegações até às Canárias de intrépidos navegadores da cidade do Tejo. As embarcações tradicionais do Tejo são fragatas, canoas, faluas e catraios. Fala-se de uma cidade de saber, de espiritualidade e de tolerância, merecendo referência intelectuais como Ibn Muqânâ (o poeta nascido em Alcabideche), Ibn Isma’il (também conhecido como al-Taytal), Ibn Sawwâr e Ibn Ibrâhim Al-Fihrî, o vizir que “era a alma da região e o seu salão em Lisbûna ponto de encontro da prosa e da poesia”. É inesgotável a matéria que podemos encontrar e as novas pistas para outras investigações e peregrinações. Na célebre carta de Raul a Osberto de Bawdsey lê-se: “Lisbûna é o mais importante entreposto comercial de toda a África e de uma grande parte da Europa, tendo sessenta mil homens que pagam tributos, fora os que não estão sujeitos a tal pagamento”. A cidade é apetecível. Os combates de 1147 foram duros e renhidos (cf. Adalberto Alves, “Em Busca da Lisboa Árabe”, 2007). Segundo Borges Coelho, a conquista “constituiu uma catástrofe para a cidade”. No entanto, depois desse momento, a presença moura manteve-se. Houve muçulmanos expulsos para os arrabaldes, mas também houve a emergência dos mouros forros (sendo “garantida aos mudéjares – muçulmanos submetidos à soberania cristã – não só liberdade e proteção, como também as condições do seu exercício, ou seja, o direito a Foro próprio e a garantia de não serem importunados, fosse por cristãos, fosse por judeus”). A Mouraria era o espaço físico destinado à comuna dos mouros forros (livres), que tinham de se sujeitar a regras de diferenciação (traje e tonsura, ostentação do crescente), a tributos e atributos, da condição de vencidos. No entanto, parece ter havido uma apreciável tolerância entre as comunidades cristã e moura, que até permitiu em diversas ocasiões aligeirar as regras mais estritas. Havia, aliás, mouros que exerciam as funções de oficiais do rei, é certo que apenas honoríficas, além de beneficiarem de doações e benefícios do monarca. O árabe era a língua religiosa e cultural. Os habitantes do Magrebe (o Ocidente; do mesmo modo que Al Gharb do Al-Andaluz, significa o Ocidente da Andaluzia) no Norte de África são de origem indo-europeia, tendo origem semelhante à dos europeus do sul da península – designadamente os vândalos da Andaluzia. Os europeus designam-nos como berberes, que são os bárbaros do sul… As palavras bárbaro e berbere têm a mesma origem – aqueles cuja língua não entendemos… Na comunidade moura há muçulmanos (que seguem o Islão), há judeus e cristãos (moçárabes). As comunidades puderam enriquecer-se neste diálogo artístico, cultural. Foi no auge da diversidade do mundo de língua árabe que os grandes filósofos gregos, como Platão e Aristóteles, além das muitas descobertas científicas vindas do Oriente, regressaram à Europa pela mão dos grandes pensadores do Mediterrâneo (como Avicena e Averróis)… Depois, houve um grande decaimento cultural das cidades e das suas referências. Contudo, para a abertura de horizontes pela Península Ibérica, urge recordar que o apelo à aventura de Ibn-Batuta (1304-1377).
Agostinho de Morais