Depois de vistas as origens míticas de Portugal, descritas tardiamente no século XV, cinco anos depois da conquista de Ceuta e, mais tarde, durante a dinastia filipina, importa centrarmo-nos na personalidade do artífice da independência pátria. Lendo a biografia de José Mattoso de D. Afonso Henriques (c. 1110-1185), percebemos a força da sua liderança estratégica construindo o poder condal à imagem e semelhança de um verdadeiro reino. Há três datas significativas que correspondem a esse caminho: 24 de junho de 1128, a batalha de S. Mamede (a primeira tarde portuguesa); 25 de julho de 1139, a batalha de Ourique; e 5 de outubro de 1143, o Tratado de Zamora. Centrado na reconquista a Sul da Galiza, sem entrar nos conflitos de poder do Reino de Leão e das ambições teocráticas do Arcebispo Diego Gelmires de Santiago de Compostela, Afonso Henriques articula a posição dos barões portucalenses com a lógica moçárabe do condado de Coimbra e com a aliança aos municípios meridionais. Enquanto D. Teresa alimenta o sonho da influência em Leão, com a aristocracia galega, concorrendo com D. Urraca e a posição de Afonso Raimundes (futuro Afonso VII) – Afonso de Portugal, como seu pai, o Conde D. Henrique, privilegia a aposta estratégica que se revelará de sucesso: mais do que o domínio militar importaria dar estabilidade à população moçárabe em termos sociais e económicos, com os privilégios foraleiros, o que realmente aconteceu. Daí o avanço significativo para Sul e a afirmação inequívoca do poder real, em aliança com os municípios, em contraponto ao alto clero e à alta nobreza. É assim importante a afirmação cultural dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, os crúzios de Coimbra, cabendo um papel preponderante a S. Teotónio, mas também dos beneditinos, designadamente em Alcobaça, numa ação decisiva de povoamento. O caso português pode ser referenciado como pioneiro numa longa e fecunda gestação — a emancipação de D. Afonso Henriques, a fronteira de D. Dinis, a adoção do romance galaico‑português como língua oficial, a revolução de 1383-85, a afirmação do Estado moderno com D. João II, o império universal português, a decadência e a Restauração, a Regeneração liberal, o Republicanismo, a democracia… De facto, este pioneirismo fez-se a partir de um Estado que precedeu a Nação (como afirmou Herculano) — realizando-se a construção da identidade a partir do século XII, pela convergência entre a Reconquista e a decadência e fragmentação dos reinos taifas, mediada pela influência moçárabe e pela persistente ânsia de autonomia e de regeneração. A verdade, porém, é que com o andar do tempo houve interações simbólicas e materiais entre a comunidade e o Estado. Como ter afirmado Manuel Villaverde Cabral, o caso português ilustra a ideia de “meio – caminho” entre as conceções instrumental e primordial da identidade nacional. Em lugar do primado ontológico da Nação, tivemos uma interação entre o Estado e a Nação, na qual o primeiro teve um papel orientador insubstituível. José Mattoso defendeu, por isso, uma ideia que se demarca do essencialismo identitário — apesar de se interrogar sobre se não seriam já portugueses os habitantes do futuro Portugal. Sem haver uma etnia, mas sim várias (ou apenas duas), a verdade é que a identidade foi sendo moldada pelo Estado e por uma vontade — a partir de um melting-pot, do diálogo e da tensão, soberbamente abordadas por Orlando Ribeiro entre o Atlântico e o Mediterrâneo ou entre o Litoral Norte, o Interior Norte e o Sul. Em suma, Afonso Henriques não foi, contudo, apenas um chefe militar, foi um administrador, um político e um condutor de homens experimentado, que merece ser conhecido à luz da História… Só um grande medievalista, como José Mattoso, com provas dadas, poderia demonstrar, como fez, tanta segurança no uso das fontes e dos elementos relevantes disponíveis. E assim podemos contar com a superação das referências puramente míticas ou imaginárias, para passar a dispor de dados que permitem entender melhor a época em que a independência portuguesa se concretizou.
GOM