O que vou contar é a pura verdade do que aconteceu, mas com é fácil de verificar, estamos perante um episódio que tem os contornos do inverosímil… Um velho amigo meu, com muitos anos de conhecimento e trabalho conjunto no domínio complexo e etéreo do património do Estado ou da fazenda pública, tinha comigo um trato que era o de nos encontramos periodicamente num restaurante da baixa – “O Sancho”. Havia duas características secretas de que ninguém suspeitava desse meu amigo, uma tinha a ver com a sua paixão por Eça de Queiroz, e a outra era a escrita, sob pseudónimo, de intrincados romances policiais, em parceria com um primo seu. No primeiro caso, acumulava prémios em concursos entre queirosianos, por escrever os melhores textos ao estilo do mestre de “Os Maias”. No segundo, publicava ao ritmo de um metrónomo, complexos exercícios dignos de ombrear com Sir Conan Doyle e Agatha Christie… Num desses encontros periódicos, algo de muito estranho aconteceu.
A refeição foi vulgar, como sempre era: sopa de legumes e um linguado clássico. Falámos de Finanças Públicas, do Dicionário de Administração Pública, que dirigia com proficiência, e retivemos por momentos a nossa atenção relativamente a Carlos Fradique Mendes, cuja personalidade literária considerávamos como boa companhia.
Mas nesse momento, houve um daqueles ápices de surpresa e de comunicação, como acontece talvez em sessões suspeitas com mesas de pé de galo. E sentimos, que alguém nos olhava com suspeita atenção. Estava sentado num dos cantos do restaurante, só, lendo distraidamente um livro antigo, que depois contatámos tratar-se de uma edição de bolso das “Fleurs du Mal” de Baudelaire da Gallimard, com o inevitável monograma NRF. Virámos o nosso olhar para esse canto da sala, e apercebemo-nos de que a personagem chamou apressadamente o chefe de mesa, terminando com urgência o leite-creme queimado que tinha na sua frente.
O meu interlocutor perguntou-me entre dentes: “- Será ele?”. Mas quando me virei já só o vi de costas, a sair apressadamente. Lembrando-me da primeira impressão e ligando-a à figura que me era dado ver, respondi maquinalmente: “– Não tenho qualquer dúvida, é mesmo ele!”. E nesse momento, a personagem conseguiu ouvir a minha afirmação”. Sei hoje que não me perdoaria esse reconhecimento.
De facto, eu sabia que o seu espírito vogava pela cidade. Continuava a existir, apesar de levar quase cem anos de dissimulação. Numa palavra, Carlos Fradique Mendes projetara-se para além da existência literária. E a sua efígie era em tudo semelhante àquela que o caricaturista António aqui nos deixa, e que reproduzo. Era de facto Fradique, ele mesmo, que encontrámos nesse dia já longínquo. Ao fim de muitos anos de presença fugitiva, eu e o meu interlocutor descobrimo-lo, ali, bem próximo de nós. Poucos já dariam por ele, mas o nosso conhecimento da figura não nos oferecia dúvidas. Mas nesse dia, começaria uma tremenda aventura, de que amanhã continuarei a dar-vos conta.
Agostinho de Morais