Cada Terra com seu Uso

I. Identidade e Cultura

Durante o mês de agosto, publicaremos este ano um conjunto de reflexões sobre Portugal, que complementam o que publicámos em anos anteriores. Começamos por lembrar a ilustração de Rafael Bordalo Pinheiro com a misteriosa pergunta sobre Zé Povinho – “Levantar-se-á?” – Agostinho de Morais.

I. Identidade e Cultura

Quem somos? O que nos distingue uns dos outros? Qual o significado dos sentimentos de pertença? Numa sociedade aberta e pluralista, as referências são diversas e complexas e temos de compreender quais os elos suscetíveis de caracterizar quem somos e de influenciar o que fazemos. As simplificações são enganadoras. Uma só pertença não nos pode caracterizar, até porque o “homem unidimensional” não permite fazer compreender a humanidade, limitando-se a uma caricatura incapaz de definir a cultura que formamos. Urge delimitar as fronteiras e os limites dentro dos quais se desenvolve a vida e a ação, que funcionam como catalisadores ou como motores de afirmação ou de emancipação.

Se Ortega y Gasset nos alertava para a necessidade de compreendermos as circunstâncias em que nos inserimos, como janelas abertas ao mundo e à ação, também nos obrigava a superar a perspetiva pobre e redutora do homem-massa. Em ambos os polos, desde o híper-egoísmo individualista à dissolução na multidão uniforme, devemos entender que a pluralidade de pertenças e que a aspiração universalista e cosmopolita à “vida digna” colocam-nos perante a exigência de equilíbrio entre a fragmentação e a emergência de uma massa indiferenciada e uniforme. Temos sempre várias referências, várias pertenças e várias atitudes e valores. Ainda que uma identidade seja muito marcada, a verdade é que procuramos sempre uma síntese que parta da situação concreta e da particularidade para uma visão universalista. A História é sempre feita de movimentos centrífugos e centrípetos e nós, atores e figurantes, somos determinantes e determinados, criadores e criaturas, em suma, o resultado e a síntese que decorrem desses encontros paradoxais.

É sabido que a cultura é uma realidade de definição difícil. Referimo-nos à superação do estado de natureza, perante os fatores que distinguem o caos e o cosmos sociais e a realização da natureza humana na relação com outros. O certo é que nos situamos na convergência entre fatores unificadores e fragmentários. Fala-se da sociedade culta como sociedade cultivada, mas fala-se também da cultura popular e de cultura erudita ou de um conceito étnico de cultura e de “cultura-aprendizagem” da sociedade educativa. A reflexão sobre a cultura e a natureza deve ser vista, assim, à luz de diversas perspetivas, uma vez que a pessoa humana e a comunidade se afirmam de várias maneiras.

A palavra Cultura, no sentido etimológico, que herdámos do Renascimento, tem uma reminiscência agrícola, ligada ao cultivar da terra, ao semear e ao colher (colo, colere, cultum). Com o tempo, a palavra passou a ter um sentido de aprendizagem de espírito e de “construção” da personalidade (bildung em língua alemã), passando a ligar-se ao processo transformador da humanidade. Os clássicos, na Grécia e em Roma, entendiam que cultura e a educação se completavam, e referiam-se respetivamente à paideia e à humanitas que significavam o caminho de desenvolvimento humano. Deste modo, o estudo da cultura corresponde à reflexão sobre o modo de nos relacionarmos e agirmos perante a natureza, sobre como damos e recebemos, como criamos e transmitimos, como transformamos informação em conhecimento e conhecimento em sabedoria.

1. Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: a importância da geografia

Portugal é uma terra de contrastes, onde pontificam o Atlântico e o Mediterrâneo. Mas é difícil de definir, pela complexidade e pela diversidade de elementos que caracterizam o território e a sociedade em que vivemos. Orlando Ribeiro escreveu em 1943 um livro notabilíssimo, pelo rigor da investigação e pela leveza da escrita, que constitui um verdadeiro vade mecum, indispensável para quem queira conhecer Portugal e a sua identidade. Trata-se de Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, do qual o escritor Ruben A. disse tratar-se do livro mais notável escrito em Portugal nos meados do século passado… É uma obra de indiscutível valia científica e de grande sensibilidade literária – essencial para compreender a identidade portuguesa. Em lugar de considerações apressadas, trata-se de indagar, através dos diversos fatores e manifestações relevantes, como é que “Portugal é mediterrânico por natureza e atlântico por posição” – na fórmula tornada clássica de Pequito Rebelo. Por que razão temos a fronteira mais antiga e estável da Europa? Como conseguimos preservar uma coesão social e cultural assinalável?

“Disposto de través na zona mediterrânica, bem engastado numa península que é como a miniatura de um continente, o território português abre-se para o mundo por uma vasta fachada oceânica” (p.131). O traçado de viés é acompanhado de alternâncias climáticas e da coexistência do clima oceânico e da secura quente. E é a “vigorosa oposição das terras altas e montanhosas, cortadas de vales profundamente incisos “, as repercussões no revestimento vegetal define uma terra de contrastes. Norte e Sul – o primeiro é atlântico, verdejante, húmido, com “gente densa”; o segundo mediterrâneo, com longos estios e escassamente povoado. Litoral e Interior – o país vai desde a verdura espessa, “banhada na luz doce e húmida” do noroeste até à aridez das terras de além Marão; desde a variegada aptidão rural do Vouga ao Sado ou do sul algarvio até aos monótonos descampados alentejanos… Terras altas e baixas, Serra e Ribeira, Campo e Monte, Montanha e Vale, Terra Alta e Terra Chã – assim define o povo a complexidade e as oposições, bem evidentes na economia e no povoamento. Desde a montanha húmida do norte e da economia agro-pastoril tradicional até aos relevos menos acentuados, secos e descarnados do sul, “onde o gado miúdo e as queimadas degradaram a floresta primitiva”, temos os traços de uma complementaridade e de um coerência meridional. E, deste modo, a unidade de Portugal é em grande parte obra humana – que há mais de oito séculos define uma entidade política antiga e estável.

2. Variedade e unidade de Portugal: contrastes e fatores de unificação

Orlando Ribeiro não se limita a interrogar a terra. Olha sempre as gentes e a sua vontade, procurando as “raízes antigas” da identidade. No fim do neolítico na Península Ibérica, fala de três áreas de civilização – a do levante, a dos planaltos centrais e a da faixa oeste. E no Oeste peninsular recorda a “civilização megalítica ocidental”, ligada igualmente à Bretanha, ao País de Gales e à Irlanda. Aí estão os redutos célticos da Galiza e de Portugal. E a sul temos as influências dos povos mediterrânicos – fenícios, gregos, cartagineses e a “brilhante civilização indígena” dos Tartessos no Guadalquivir – com a misteriosa “escrita do Sudoeste”. Os tempos vão revelando as diferenças e as ligações, as continuidades e as descontinuidades. Os conventi romanos, a organização administrativa dos suevos e dos visigodos, as divergências da monarquia goda, a invasão moura, a influência árabe, a reconquista cristã, a coexistência das zonas estabilizadas dos reinos cristãos a norte e dos reinos taifas no meio dia com uma zona intermédia de incerteza e de alternância de influências – tudo nos vai revelando uma multiplicidade de elementos, num curioso melting pot, que vai gerando a autonomia ocidental peninsular. É o cadinho típico de uma zona de Finisterra que se manifesta. Os povos vindos da Europa chegavam e misturavam-se, gerando uma hospitalidade de sobrevivência e uma construção de pluralismo e diversidade.

O formigueiro humano e a intensa atividade rural de Entre Douro e Minho no tempo da reconquista exprime o código genético do que será depois a unidade política que origina Portugal. E Portucale, junto à foz do Douro, vai ser matriz do corpo político donde sairá o Estado português – um Estado que precede a Nação. Portucale serve, desde cedo, após a reconquista do século IX, como designação dos domínios cristãos a sul do Lima. No fim do século X, há já um condado (e até há um fugaz rei Ramiro – entre 926 e 930) e, pouco mais de cem anos depois, Henrique de Borgonha verá ser-lhe atribuída a tarefa incerta e difícil de consolidar e dilatar a influência cristã na região moçárabe de Coimbra para sul, além da linha Mondego/Serra da Estrela, tendo o Tejo como horizonte. No Sul, almorávidas e almoádas dominavam o Magrebe e o Al-Andaluz, até ao nosso Al-Gharb do Al-Andaluz (o Ocidente da Andaluzia) com pouca atividade agrícola e largos descampados, apesar das inovações de influência árabe nos vinhedos, olivais, pomares de laranjas e hortas regadas.

São os contrastes naturais que determinam ainda a deslocação de populações. As vindimas do Douro, as ceifas da Terra Quente, a apanha da azeitona na Beira Baixa, as ceifas no Alentejo, a retirada da cortiça. E assim havia movimentos internos, sazonais, de gentes. Nos arrozais encontramos os caramelos do Mondego e do Vouga, mas há ainda os gaibéus do norte do Ribatejo ou os avieiros da foz do Liz… Isto, sem esquecer os minhotos e pica-milhos, os beirões e os ratinhos. E em Lisboa e na Caparica encontramos as varinas e varinos de Ovar, ao lado dos pescadores de Ílhavo. E em Azeitão, Orlando Ribeiro descobre a curiosíssima distinção entre os caramelos de estar e os caramelos de ir e vir, ou seja, os colonos permanentes e os migrantes periódicos. É este o entrecruzar de influências que reforça o melting pot e a identidade portuguesa complexa e diversa. Por isso José Mattoso considera a identidade portuguesa como complexa, diversa, plural e aberta.

Agostinho de Morais

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