UMA GRAÇA ENORME…
«Eu tenho uma graça enorme que foi ter nascido na família em que nasci, onde muita gente fazia coisas importantes e significativas, E isso foi muito inspirador para mim». Assim se exprimiu, pouco antes de nos deixar, o Padre António Vaz Pinto, S.J.. «Nunca me entendi a viver dos rendimentos. Pouco a pouco, fui olhando para fora da minha família, para o mundo, a realidade e fui percebendo que era chamado – e isto não tem nada a ver com a vida religiosa e ser padre – a fazer qualquer coisa no mundo e na história». Era assim este militante de uma vida empenhada e entusiasta. Sempre que o encontrei nessa atitude de procura permanente, e foram muitas vezes e durante um período muito alargado, num trabalho persistente de pensar, refletir e, sobretudo, de acompanhar a direção da “Brotéria” (depois de ter tido, há mais tempo, uma outra experiência, diferente, mas igualmente profícua com o saudoso Padre Luís Archer). Para o Padre António não fazia sentido agir sozinho e ele foi sempre a prova permanente disso mesmo. A equipa, a partilha, o encontro e as diferenças, eram necessários. As noites da “Brotéria”, na Rua Maestro António Taborda, que fora a casa do Padre Manuel Antunes, onde este se multiplicava a tratar dos mais diversos temas, ainda hoje atuais – desde a filosofia e da literatura à política internacional e à sociedade – eram sempre muito inspiradoras, como há dias me recordava Manuel Braga da Cruz, graças à orientação do então diretor. Desde o pensamento à análise dos acontecimentos recentes, além das artes, do cinema, da educação ou da saúde, tudo tinha lugar. «A ideia de contruir (costumava dizer António Vaz Pinto) aproxima-se muito da ideia de gerar, produzir ser e realidade humana». E as ideias fluíam, naturalmente, num equilíbrio entre a urgência e a reflexão, tão necessário, e tantas vezes esquecido.
UM TESTEMUNHO DE VIDA
A leitura dos dois volumes de “História de Deus Comigo” (Aletheia) é importante, e de algum modo singular. Não é comum na tradição jesuíta, compreende-se, porém, a necessidade dessa convergência entre a espiritualidade e a ação – e a vitalidade que pressupunha. Não esqueço, na igreja de S. Roque, na proximidade dessa obra-prima da arte em todo o mundo que é a capela de S. João Batista, um dia, o ter-me feito regressar, com o espírito jovial de quem visitava um lugar mágico, junto ao túmulo de Francisco Suarez, cuja memória ambos admirávamos ou a lembrança do tempo em que ali mesmo o Padre António Vieira levava os fiéis do seu tempo a levantarem-se de madrugada para ir pôr tapete a S. Roque, para ouvir os sermões inspirados do genial orador sagrado. «Na arte de persuadir, disse Vieira em 1644, a arte tem mais de natureza do que de arte, porque no pregar hão de cair as coisas e hão de nascer, tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo». E assim do modo mais natural, havia em António Vaz Pinto uma paixão natural pela história e pelas raízes, sendo o tempo um lugar da sua permanente familiaridade. Leia-se o seu livro sobre a Casa do Burgo em Arouca. O estudo das raízes genealógicas de seus antepassados em Vila Meã do Burgo corresponde a uma investigação cuidada e esclarecedora. Tudo sem esquecer a lembrança de seu avô, o poeta Eugénio de Castro ou de seu tio D. Manuel Bastos Pina, bispo de Coimbra e confessor da Rainha D. Amélia… A curiosidade insaciável e a descoberta dos mistérios do passado faziam parte da sua personalidade atenta e sempre disponível. Ao percorrermos a sua biografia, encontramos uma vocação religiosa profundamente ponderada. Regressado de estudos teológicos na Alemanha, foi ordenado presbítero em 1974, começando a sua vida na Companhia de Jesus, atento à realidade da juventude universitária, criando os Centros de Coimbra e de Lisboa – o que conduzirá à organização do Forum Estudante, que terá uma importância fundamental na multiplicação de iniciativas nos meios estudantis. A formação da juventude e a mobilização de militantes capazes de ligar a reflexão e a ação no terreno num novo modo de evangelização ocuparam sistematicamente o seu múnus. Profundo conhecedor da espiritualidade de Santo Inácio de Loiola, procura aplicá-la aos dias de hoje, ligando, com inteligência, tradição e modernidade. A pastoral da cultura e da inteligência não poderiam, porém, ficar-se pela abstração, uma vez que a sua vida sempre se fez com os pés bem assentes na terra. E neste ponto liga-se a consciência social, e a perceção de que as injustiças e desigualdades não poderiam estar fora das preocupações fundamentais da atualidade. As injustiças, os problemas dos refugiados, o agravamento das desigualdades, as consequências das guerras tudo obrigaria a planos de ação suscetíveis de obter resultados práticos. Não esqueço o diálogo que tivemos sobre a encíclica de Bento XVI “Deus Caritas Est” e sobre a ligação às modernas políticas de desenvolvimento, que depois foram tratadas pelo Papa Francisco em “Laudato Si’”. Numa preocupação permanente, em prol de uma sociedade mais justa, ajuda a criar o Banco Alimentar contra a Fome, como estrutura inteligente, eficaz e prática para responder às limitações do consumismo e mercantilismo. Pensando nos países em desenvolvimento, lança os Leigos para o Desenvolvimento, que mobiliza centenas de jovens para o terreno difícil das novas nações africanas, em missões suficientemente prolongadas, para poder ter resultados positivos e duradouros. Pensando nos países do leste europeu e nos seus migrantes cria o Centro de S. Cirilo, no Porto. Por outro lado, colabora com a Fundação Pro-Dignitate, presidida por Maria Barroso e aceita assumir as funções de Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, onde prosseguiu o trabalho que vinha desenvolvendo em prol da justiça e do desenvolvimento. Trabalhou, pensou, continuou a idealizar novas soluções e iniciativas até ao fim. O Padre António Vaz Pinto deixou-nos uma herança de esperança e de entusiasmo, de justiça e paz, que não esqueceremos.
Guilherme d’Oliveira Martins
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