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HELENA VAZ DA SILVA: FUTURO COMO PASSADO QUE AMANHECE

Foi há dez anos que nos deixou, mas o seu desejo seria o de que a lembrança corresponda a um permanente apelo às coisas novas, ao futuro, à cultura como criação permanente e fecunda.


HELENA VAZ DA SILVA:
FUTURO COMO PASSADO QUE AMANHECE
por Guilherme d’Oliveira Martins


Foi há dez anos que nos deixou, mas o seu desejo seria o de que a lembrança corresponda a um permanente apelo às coisas novas, ao futuro, à cultura como criação permanente e fecunda. Teixeira de Pascoaes falava do «futuro como passado que amanhece» e, ao recordarmos, temos presente este apelo moderno da cultura portuguesa, que não deve referir-se a um tempo mais ou menos distante, mas às «descobertas» de hoje e de amanhã, numa sociedade aberta, cosmopolita, e sobretudo universalista, animada pelos ideais da criatividade, do respeito e da dignidade.


Falo de Helena Vaz da Silva (1939-2002), personalidade presente da cultura que está bem na nossa memória e na nossa vida, pelo entusiasmo que pôs nas suas iniciativas, pela sede de encontro que promoveu. Quando, há cerca de dois meses, se realizou o Congresso da Europa Nostra, em Lisboa, como grande celebração do património cultural europeu, e quando foram feitos apelos persistentes para a defesa do património em perigo, sentimos que era o espírito de Helena que estava evidente, desde a UNESCO ao Conselho da Europa e ao Parlamento Europeu, a propor a mobilização cívica em torno da salvaguarda da herança e da memória. E Plácido Domingo homenageou a militante da cultura, recordando-a como grande inspiradora de um modo novo de exercer a cidadania da cultura, como está claramente estatuído na Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (Convenção de Faro de 27 de outubro de 2005, entrada em vigor a 1 de junho de 2011). As modernas políticas públicas da cultura ligam a preservação do património à criação e contrapõem-se à ideia de uma economia de especulação e da cultura como luxo. Como poderemos entrar num caminho de recuperação e desenvolvimento sem pôr a qualidade em primeiro lugar, sobretudo num país (na lusofonia e na Europa) com memória e com história antiga? A cultura não pode resumir-se a lendas ou ilusões perdidas, feitas de indiferença e de ignorância.


Mas se falo da Europa Nostra e da mobilização das pessoas para a defesa da cultura viva (monumentos, tradições, obras de arte, literatura, língua, música, dança, teatro, banda desenhada, criatividade), refiro ainda o que HVS pôs em movimento: bolsas para jovens artistas e escritores, criar lusofonia, os guias Portugal no Mundo, as bases de dados sobre o Património português, as viagens dos Portugueses ao encontro da sua História. E tudo isso continua. Há dias terminou a segunda Universidade de Verão que trouxe a Portugal sessenta escritores norte-americanos (em memória de Alberto Lacerda e invocando o pessoano desassossego – Disquiet). Homenageámos Sophia, Eduardo Lourenço, Gonçalo Ribeiro Telles – e preparamos a invocação de António José Saraiva (CNC e CCB). Pode perceber-se, assim, dez anos passados, que Helena deixou um espírito, deixou uma equipa, um coração largo (como a morabeza cabo-verdiana), uma curiosidade e uma atenção que não devem ser esquecidas. A cidadania cultural não pode confundir-se com jogos florais ou exposições de curiosidades. A investigação histórica, a cooperação com as universidades, a conservação, a preservação do património e da memória, os roteiros culturais, a participação ativa de escritores, poetas e artistas, o turismo de alta qualidade – eis o que está em causa ao falarmos do Centro Nacional de Cultura (de Almada, de Fernando Amado, de Francisco e de Sophia, de Gonçalo), que Helena tornou realidade renovada, atuante em democracia. Nada do que é vida pode ser estranho à cultura, à educação e à ciência – e a verdade é que este triângulo tem de estar presente, se quisermos recusar a mediocridade e a irrelevância. Mais do que gestos de novo-riquismo, do que se trata é de ver a cultura como sinal de sabedoria e de aristocracia do comportamento, como gostava de dizer o nosso querido António Alçada Baptista, que Plácido Domingo chama de senhorial, na nossa cultura.


Dez anos passaram. Na passagem de testemunho ajudou Maria José Nogueira Pinto (que saudades, de ambas!) no combate pelo serviço público de televisão, enquanto ato de cultura. Dentro de um mês visitaremos o coração do barroco brasileiro em Minas Gerais, entre o Aleijadinho e Guimarães Rosa, e estaremos no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro ou na Academia Brasileira de Letras celebrando o espírito do humanismo universalista não como algo de nostálgico, mas como sinal de um diálogo novo entre duas culturas modernas.


Assim, na celebração dos 50 anos da Europa Nostra será atribuído pela primeira vez o Prémio europeu do Jornalismo do Património Cultural que tem o nome de Helena Vaz da Silva. E, como afirmou a Comissária Europeia Androulla Vassiliou, trata-se de um reconhecimento de grande prestígio que fazia falta, ligando a Europa, em Portugal, à defesa do que de melhor a humanidade possui, o valor da sua memória.

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