Compreende-se pela distância, pelo isolamento e pelo carácter inóspito da natureza que este tenha sido um domínio reservado aos corsários e aos mercenários.
Se o Padre Sebastião Manrique é exemplo especial de alguém que foi respeitado pela sua ação missionária, os outros portugueses que aqui se celebrizaram tiveram vidas violentas e agitadas e fins trágicos ou incertos. Não se compreenderá a diversidade da presença portuguesa nestas paragens sem vir ao coração deste misterioso lugar. Daí que o turismo que aqui se pratica é de aventura, como, em todo o mundo, se anunciam os programas que têm este destino.
Arracão era constituída pela cidade real cercada de muralhas em cujo centro se encontrava o Palácio. Extramuros havia diversos bairros habitados por estrangeiros de várias nacionalidades com os seus hábitos, costumes e atividades.
Em Daingrih-pet, a sudoeste, habitavam portugueses e indianos católicos e as edificações eram de pedra. Com o desenvolvimento do bairro os lusodescendentes foram construindo, como os autóctones, as suas casas em bambu. Estando na margem esquerda do rio, o bairro situava-se numa posição privilegiada, como se verifica pelas gravuras que chegaram até nós, em frente à cidade murada e ao palácio do rei. À comunidade portuguesa era permitido o culto religioso católico, ainda que, com o tempo tivessem ganho hábitos e costumes quotidianos em tudo semelhantes aos da restante população. O chefe do bairro era designado como capitão, ainda que não dependesse funcional ou politicamente de Goa. Muitos lusodescendentes exerciam funções no paço real, nas mais diversas ocupações, desde as mais simples às mais complexas, como as de intérpretes ou línguas, às de aias da rainha e princesas.
Cada nacionalidade tinha uma especialidade própria – por exemplo, no bairro japonês a corte recrutava sobretudo os guardas reais.
No caso de Daingrih-pet, o bairro criado para os portugueses, em 1616 integraram-se os cativos de Sundiva, após a derrota do mercenário português Sebastião Gonçalves Tibau. Este assenhoreara-se da ilha de Sundiva no estreito de Bengala, depois de uma vida aventurosa e de desenvolver a sua ação de corsário até ao reino de Pegu. Natural de Loures, embarcou para a Índia em 1605, desertou do serviço da coroa e foi para Bengala onde ganhou poder e influência. Foi feitor das embarcações do sal, o grande negócio da região, que lhe permitiu adquirir uma embarcação que servia para o comércio e para o corso. Estabeleceu-se em Djanga no reino de Arracão. Foi, porém, apanhado pelo massacre que atingiu a povoação, em virtude de ter havido a tentativa de Brito e Nicote a conquistar, o que o rei não tolerou, massacrando seis centenas de portugueses e seus apoiantes, a começar no próprio filho de Nicote. Tibau escapou com vida e procurou reconquistar a ilha de Sundiva, o que conseguiu por pouco tempo, graças ao apoio de forças vindas de Goa, comandadas por D. Francisco de Menezes e depois por D. Luís de Azevedo. A decadência foi, porém inexorável (depois da retirada das forças de Goa), Tibau foi vencido, não se sabendo ao certo qual o seu destino. Apesar de ter sobrevivido, Tibau veria chegar ao fim o seu sonho de ser rei de uma ilha fértil.
Voltando a Arracão, não esqueçamos que Sebastião Manrique, o nosso conhecido monge agostinho foi quem obteve permissão para construir duas igrejas católicas em madeira e bambu. Num dos templos eram assistidos os cristãos japoneses e na do Bom Sucesso os portugueses. Graças ao oficial britânico Maurice Collis, chegou até nós uma belíssima planta do Bairro Português. O que hoje persiste na cidade permite-nos ter ainda uma perspetiva aproximada do que os nossos antepassados viram e sentiram neste dédalo de rios, com uma flora exuberante e rica. O Museu Arqueológico de Mrauk-U alberga ainda hoje artefactos, armas e canhões catalogados como portugueses. Nos subúrbios há uma ruína considerada como o que resta da feitoria dos portugueses. No entanto, segundo a historiografia moderna (e Maria Ana Marques Guedes) poderá tratar-se da ruína da feitoria holandesa, uma vez que chegaram até nós documentos onde há a reiterada recusa dos pedidos dos portugueses para edificarem um entreposto. Assim se entende o muito especial império que os portugueses foram criando e hoje se recorda pelas lembranças.
Guilherme d’Oliveira Martins