Vindos de Banguecoque, chegados à antiga capital de Mianmar, Rangum, fica na memória o interesse que essa antiga região tinha para os portugueses de Malaca. Pegu era um dos grandes fornecedores de arroz, numa zona de rios, era ainda um centro de construção naval em que Malaca se abastecia de juncos (de grande porte e muitos mastros) para a sua navegação comercial e era ainda entreposto para a saída do lacre, do almíscar, das pedrarias, bem como de todos os produtos da Alta Birmânia e de Sião do norte. Com forte influência budista, que suplantou largamente o hinduísmo, a zona tinha e tem muito diminuta presença muçulmana, o que levou Afonso de Albuquerque logo a delinear um plano de aliança após a conquista de Malaca, enviando a Pegu um mensageiro chamado Rui Nunes para acertar a paz e o entendimento com o governo desses povos.
E é esta história assim iniciada que aqui se procura. A primeira impressão é dada pelo Strand Hotel, um dos míticos hotéis do Império Britânico, que descobrimos em todos os álbuns que recordam a nostalgia vitoriana. O Strand foi propriedade dos irmãos Sarkies, a quem também pertenceram outros luxuosos estabelecimentos, como os Hotéis Raffles de Singapura e Eastern&Oriental da Malásia. A construção foi recuperada, as madeiras antigas foram privilegiadas, as vergas requintadas, o estilo dos móveis fielmente respeitados… Depois de uma história atribulada de exclusivismo imperial, que passou pela instalação fugaz do comando das tropas japonesas ocupantes (1941) e culminou na decadência logo após a independência birmanesa (1948), retomou nos últimos trinta anos a antiga aura. Hoje, após o restauro criterioso que procurou preservar a personalidade antiga do hotel inaugurado em 1901, pode usufruir-se o ambiente de um dos mais carismáticos hotéis do mundo, estudado por Andreas Augustin. Os fantasmas dos antigos frequentadores destas salas e destes quartos são de respeito: Rudyard Kipling (que encontrámos em Singapura, aqui esteve um dia), George Orwell foi funcionário de S. M. Sereníssima e aqui esteve, mas ainda Somerset Maugham, Lorde Mountbaten – Peter Ustinov e até Mike Jagger. John Murray no seu Guia para Viajantes, escrito no dealbar do século XX, referiu-se ao Strand como possuindo a mais requintada hotelaria a oeste do Suez… E como afirmou Somerset Maugham em «The Gentlemen in the Parlour» (1930) sobre a sua inolvidável experiência no Extremo Oriente: o que é mais impressionante, «o mais inspirador monumento da antiguidade, não é aqui um templo, nem uma cidadela, nem um muro, mas o homem». Nesta afirmação está porventura a chave do extraordinário interesse de uma peregrinação como esta – ao encontro de um riquíssimo património cultural imaterial, em que as tradições e o diálogo de muitas influências pesam significativamente.
Profª Maria Calado, Father Peter e Patrícia Portela
Father Peter é descendente de portugueses de Mandalei da nona geração. Testemunhou que os seus antepassados eram os “guarda-costas” do rei. Está hoje em Rangum, a trabalhar com o Cardeal Charles Bo e o Bispo auxiliar Saw Yaw Han com quem nos encontramos e que celebrou missa para parte do nosso grupo.
No centro de Rangum ainda se faz sentir a herança britânica, vitoriana e eduardiana. O tema da proteção desse património de influência imperial tem sido muito controverso. Há um confronto entre os que consideram que muitos dessas edifícios são reminiscência de um período de domínio colonial (que deve ser esquecido) e aqueles que salientam o valor patrimonial de muitas dessas construções – de que um exemplo é exatamente o Strand Hotel. A Central dos Correios, a Sede da Companhia de Caminhos de Ferro, os antigos tribunais, os Armazéns comerciais mais antigos singularizam-se pela nítida influência britânica… Desde o momento que a junta militar transferiu a capital de Rangum para Naypyidaw (Cidade dos Reis) que persiste esta polémica – sendo cada vez mais significativa a posição de quantos defendem que Mianmar tem tudo a ganhar se preservar os marcos da sua multifacetada história, nos diversos tempos e sob as várias influências…
Mas ainda há muito para andar…
Guilherme d’Oliveira Martins