Ao pé de uma velha alfarrobeira, com mais de dois séculos, Fernando Pessoa mostra o seu trabalho mais recente: o percurso ecobotânico Manuel Gomes Guerreiro, um jardim in situ para dar a conhecer a história do barrocal algarvio, contada através das plantas. Ao completar 80 anos, um dos arquitetos paisagistas mais influentes da sua geração — herdeiro do legado de Gonçalo Ribeiro Telles — continua a trabalhar e a publicar. Intervir na Paisagem é o título do último livro. O seu legado, que se estende do Algarve ao Gerês, passando pela Madeira, levou a que a Universidade do Algarve (UAlg) lhe prestasse recentemente homenagem. Além de tudo o mais, é também um professor muito especial.
Esta sua nova obra, um ecomuseu situado entre o barrocal e a serra do Caldeirão, vai mostrar como se cruzam as “paisagens culturais” com o património natural. “As alfarrobeiras, tal como os loureiros, são espécies — relíquias que ficaram do tempo em que o Mediterrâneo era tropical e subtropical”, diz o arquiteto, evocando a aridez do deserto do Norte de África, cada vez mais próxima. À entrada do terreno onde vai nascer o jardim, faz uma pausa, puxa pelo cachimbo. “É o meu vício”, confessa. A árvore, de pé rugoso, está debruçada sobre a montanha, como se fosse uma sentinela a indicar o percurso ecobotânico que ali vai nascer.
O projeto que assina, em co-autoria com João Marum, junta inovação (tecnologia 3D, concebida na Universidade do Algarve) com a arte mais tradicional de moldar a paisagem. Assim, o visitante, ao deambular pela montanha, fica, com a ajuda do telemóvel, a conhecer a história das plantas mais emblemáticas do barrocal. O botânico Rosa Pinto registou e identificou mais de 1700 espécies nesta zona do Algarve, sobretudo no vale da Fonte Benémola. “A flora do Algarve merece um lugar para ser estudada”, diz, evocando o papel destacado que teve Manuel Gomes Guerreiro, natural de Querença, enquanto cientista e defensor da floresta mediterrânica. A obra, com custo estimado em cerca de 200 mil euros, foi financiada pelo programa operacional do Algarve Cresc2020 e os trabalhos arrancam no primeiro trimestre do próximo ano.
O fundador e antigo presidente do Serviço Nacional de Parques e Reservas, atual Instituto da Conservação da Natureza e Florestas, concebeu um jardim aproveitando plantas autóctones, o que lhe permite quase não precisar de rega. “A seca não está a ser levada a sério”, lamenta, insurgindo-se contra a “palmeirite aguda” e as grandes áreas de relvados que existem de norte a sul do país. “Espalhou-se a ideia de que uma paisagem turística exótica, sempre verde, e com muitas palmeiras, teria muitos mais atrativos para quem visita a região.”
Fernando Pessoa foi docente em várias academias, sendo co-fundador do curso de Arquitetura Paisagística da UAlg, onde lecionou durante dez anos. “Marcou a universidade para sempre”, afirmou o então reitor António Branco. “Colocou poesia na paisagem”, sintetizou. A prenda de aniversário, entregue durante a homenagem que lhe foi prestada pela Associação dos Arquitetos Paisagistas, não podia ser mais apropriada: Um carvalho-de-monchique (Quercus canariensis), espécie rara, ameaçada pelos fogos. O objetivo era que o exemplar fosse plantado no jardim da sua casa, mas vai ter outro destino. “Ofereci-o à Fundação Manuel Viegas Guerreiro (FMVG) para integrar o percurso ecobotânico — ali vai estar bem acompanhado”, comenta.
Pai da ecomuseulogia
O conceito que agora está a pôr em prática — a ecomuseulogia — foi introduzido por este dinâmico arquiteto. Fernando Pessoa sempre assumiu, há muitos anos, uma nova linguagem na proteção e conservação do ambiente. “Toda a paisagem é cultural, [alterada pelo homem ao longo de séculos]”, sublinha. “A cultura e a identidade portuguesas fundaram-se na ruralidade e no mar — e ambas as origens daquilo que fomos ao longo dos séculos estão ameaçadas”, alerta.
Há quem lhe chame herdeiro de Gonçalo Ribeiro Telles, embora tenha traçado o seu próprio percurso, desbravando novos caminhos na sensibilização de todos para as questões ambientais. A relação de proximidade com aquele que foi o seu professor de Arquitetura Paisagista surge ainda durante as aulas, no início da década de 60. “Foi uma surpresa para mim, quando ele foi expulso do ensino — pensava que só os comunistas e republicanos é que eram presos, mas, tratando-se de um monárquico, não percebi o castigo”, observa.
A partir desse momento, haveria de nascer uma amizade que ainda hoje se mantém: “Quando ainda era estudante, fui trabalhar no seu atelier e vivi de perto as lutas que travou.” Mais tarde, quando se dá o 25 de Abril, Fernando Pessoa trabalhava na Direção Regional de Urbanismo do Funchal, onde se bateu pela preservação das levadas. Um dia recebeu de Ribeiro Telles, o então novo secretário de Estado do Ambiente, um telefonema em jeito de ultimato: “Se não vier trabalhar comigo, nunca mais lhe falo.” Não foi preciso muita insistência, fez as malas e regressou ao continente, para ocupar o lugar de chefe de gabinete do novo titular de uma pasta governamental acabada de surgir: o ambiente. Na verdade, acrescenta, “também estava farto de ouvir Alberto João Jardim [chefe do governo da Madeira] praguejar contra os “cubanos do continente”. Apesar da ebulição política que o país então vivia, conseguiu lançar o instrumento que viria a ser o pilar das primeiras políticas de ordenamento do território — fundou e foi o primeiro presidente do Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, em 1976, hoje Instituto da Conservação da Natureza e Florestas.
O livro Intervir na Paisagem, que saiu há cerca de um mês, reproduz 33 textos escritos por Pessoa em diferentes períodos. A esta obra, com diferentes abordagens sobre as questões ambientais, juntam-se mais duas dezenas de títulos do mesmo autor. Os arquitetos paisagistas portugueses, observa, “nunca se deram muito ao trabalho de escrever, a não ser ocasionalmente em artigos de revistas ou para palestras”. Porém, constata, “existem colegas de grande qualidade e enorme projeção, que trabalham em vários países, e cuja atividade quase passa despercebida”. Por isso, tomou a iniciativa de divulgar os textos de Gonçalo Ribeiro Telles e Ilídio de Araújo, entre outros.
Uma “gaiola” poluída
Na nota de introdução do livro, Jorge Paiva, catedrático da Universidade de Coimbra, elogia o trabalho dos que lutam contra “este estado de inconsciência global” em que se encontra o planeta. Fernando Pessoa é apontado como uma referência no universo dos que erguem a voz contra os atentados ambientais. “Foi e mantém-se um lutador incansável”, enfatiza. A maioria da população mundial, diz o académico, biólogo, “não faz a mínima ideia do que está a acontecer ao globo terrestre que, atualmente, não é mais do que uma ‘gaiola’ poluída”. A floresta, acrescenta, está reduzida a 20% daquela que existia quando a nossa espécie apareceu no globo. O resultado do desordenamento traduz-se no drama “do país a arder todos os Verões, entre muitos outros”.
Os fogos e a seca têm estado no centro das intervenções de Fernando Pessoa, que fez dos ensinamentos de Gonçalo Ribeiro Telles uma cartilha e um exemplo de humildade para encarar a natureza. “Não existe no ADN da maioria dos políticos o gene da sabedoria do longo prazo — todos querem fazer figura rapidamente”, escreveu, no PÚBLICO, em 2016, chamando a atenção para o (des)ordenamento do território. A floresta e a mata, enfatiza, “são realidades de longo prazo, donde a dificuldade dos políticos em decidirem políticas de reconversão florestal que não darão votos a curto prazo”.
Apesar de os políticos reconhecerem que há sérios problemas ambientais, como as alterações climáticas, têm de passar das palavras ao atos, insiste. “É preciso um ministério do Ambiente com convicções ambientalistas e não um mero executor de medidas desgarradas e antiecológicas”, escreveu no seu blogue, criticando muitas das decisões que foram tomadas nas últimas décadas: “Os Serviços Florestais eram um dos mais prestigiados e antigos órgãos da administração pública, vinham do tempo da monarquia e hoje desapareceram como entidade autónoma”, alertou.
Em relação à lei da Reserva Ecológica Nacional (REN), dá razão a quem critica a forma como está ser utilizada. “A REN é aplicada como se fosse um conjunto de regras uniformes para todo o país e não, como é o seu espírito, de normas adaptáveis regional e localmente”, aponta.
De entre os livros publicados por Fernando Pessoa, destacam-se duas obras: Fotobiografia de Manuel Gomes Guerreiro, em 2007, e Fotobiografia de Gonçalo Ribeiro Telles, em 2011 — duas figuras de referência no ambiente em Portugal. O primeiro, no seu livro O Homem na Perspetiva Ecológica, escreveu: “Ao delimitá-los [jardins] e preservá-los, está-se a contribuir para que neles o Homem aprenda a conhecer, a respirar e a amar a Natureza. Só assim poderá sobreviver.” Agora vai surgir um “percurso ecobotânico”, com o seu nome, na aldeia (Querença), onde nasceu Gomes Guerreiro, que foi o primeiro reitor da Universidade do Algarve.
Os passeios no areal da ria Formosa, seguidos de banhos de mar — faça chuva ou faça frio — parecem ser a fonte de juventude deste octagenário. Oito décadas em que, além de deixar uma pegada indelével na defesa do ambiente no país, foi inspiração para muitos, que hoje lhe seguem os passos na luta para que o homem pare de destruir a única “casa” que tem para habitar.
por Idálio Revez, in Público | 31 de dezembro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público