Abecedário da Cultura da Língua Portuguesa

F. Fernando Pessoa

Zé Fernandes e porventura Jacinto poderiam ter encontrado um dos fantasmas de Pessoa… Como saído da lâmpada de Aladino, esse espírito encontra-se na misteriosa arca… Pessoa é um escritor vulcânico, di-lo Richard Zenith: “quando as palavras começavam a fluir, usava todos os tipos de papel à disposição – folhas soltas, blocos de notas, papel de carta dos cafés que frequentava, páginas arrancadas de agendas ou calendários, as costas de tiras de banda desenhada e folhetos, sobrecapas, bilhetes de visita, sobrescritos e margens de manuscritos alinhavados alguns dias ou anos antes. E todos eram por ele depositados na grande arca de madeira: a herança que deixou ao mundo.

«Mais surpreendentes do que os escritos exumados da arca (foram) as dúzias de alter egos desconhecidos que, depois de se esconderem lá durante anos, entraram no mundo como se tivessem sido despertados de um sono encantado”. Do filósofo esotérico Raphael Baldaya ao ultra-racional Barão de Teive, passando pelo único heterónimo feminino, o da tuberculosa Maria José, apenas três dos autores criados por Pessoa, tiveram desenvolvimento pleno – Alberto Caeiro da Silva (1889-1915) autor de “O Guardador de Rebanhos” e de “O Pastor Amoroso”; Ricardo Sequeira Reis (1887), médico, professor de Latim no liceu, autor de odes clássicas ao modo de Horácio, emigrado no Brasil e Álvaro de Campos, engenheiro naval, formado na Escócia, nascido em Tavira (1890), o mais assertivo e prolífico dos heterónimos pessoanos… Mas o mais importante trabalho de Pessoa em prosa foi o “Livro do Desassossego”, que “ilustra o princípio da incerteza que percorre o seu universo literário”. São quinhentos fragmentos, que apenas viram a luz do dia em 1982, cujo narrador é Bernardo Soares, um semi-heterónimo, para quem “o único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”. Zenith compara esse livro ao de Robert Musil “O Homem sem Qualidades”. Contudo, a ausência e a sobreabundância de qualidades representam as faces contraditórias do homem moderno. Foi preciso tempo, porém, para que os leitores de Pessoa pudessem compreender uma poética de identidade fragmentada. Eduardo Lourenço foi quem, de modo original, pôde compreender os elos íntimos dessa misteriosa diversidade em “Pessoa Revisitado”. Talvez tenha sido positivo o atraso na revelação dessa obra crucial, para que a crítica pudesse ultrapassar as primeiras impressões. Com recusa do completo e do definitivo, Pessoa interessa-se pelo oculto e a heteronimia pode ser explicada como um meio quase religioso, mágico ou alquímico que permite progredir, na viagem espiritual de Pessoa, que anseia sentir por tudo de todas as maneiras possíveis. E há uma citação misteriosa e isolada, entretanto encontrada, de um fragmento da carta de S. Paulo aos Coríntios, que parece ser reveladora: “Eu me fiz tudo para todos, a fim de salvar a todos”. A diversidade é uma indelével marca pessoana. Nos amores, tem com Ofélia Queiroz uma relação indecisa e a marca de uma sexualidade difusa. Na política, António Mora defende a causa alemã na guerra, enquanto Pessoa se inclina para os Aliados, com entusiasmo limitado. A verdade é que é a arca, mais do que os testemunhos pessoais, a grande reveladora da vida misteriosa do poeta. Tímido e delicado na conversa, tinha sentido de humor, vestia com esmero e era muito educado. Há unanimidade na apreciação. Quanto a confissões autobiográficas, encontramo-las em toda a parte. Na “Tabacaria”, Campos fala do hipotético amor com a filha da lavadeira e acena ao Esteves pela janela. Tudo pode acontecer. Como afirmou John Keats, “a vida de um homem digna de valor é uma alegoria contínua”. O que Pessoa imaginou, visionou e projetou foi único na sua vastidão e variedade. – «Sê plural como o universo!» – escreveu de forma imperativa num papel encontrado na arca, na década de 1960. Que fantasma se segue?   

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