Abecedário da Cultura da Língua Portuguesa

Epílogo

E chegamos ao termo deste folhetim de Verão de 2023, para o qual escolhemos como tema a fantasmagoria. O que significou essa escolha? A compreensão de que ao falar de literatura estamos sempre a falar de quem, apesar de já não nos acompanhar fisicamente, persiste em estar connosco. Que é a memória? Foi Mia Couto quem um dia disse, relativamente a seu Pai (que aqui lembrámos), que a presença e a memória daqueles que nos acompanharam não pode cair no esquecimento. A lembrança, acompanha-nos sempre. E tivemos a agradável surpresa assistir a um fenómeno inesperado e feliz. Carolina Michaelis de Vasconcelos tornou-se no folhetim deste ano uma heroína viva. De súbito (e sem que pudéssemos suspeitar ou adivinhar) criou-se um movimento espontâneo de milhares de opiniões, de elogios, de saudades a dizer que há mais de cem anos houve uma mulher que acreditou na audácia de dizer que a liberdade e a igualdade vivem de braço dado e que, indo às raízes da nossa cultura, a ideia de saudade não era uma melancolia triste, mas um apelo de esperança. E se Carolina o disse ao estudar desde os trovadores até à lírica moderna, a verdade é que fomos até ao caminho audacioso de Aurélia de Souza, que com um dedo determinado nos indicou a via de uma cultura viva, moderna, apaixonada…

E foi essa paixão que uniu os fantasmas que fomos encontrando – desde Bernardim Ribeiro a Diadorim, de Gil Vicente à Joaninha dos Olhos Verdes (e até poderia ter sido a Morgadinha dos Canaviais), desde as almas descobertas por Ruben A. ao cair da noite até ao crioulo de Germano Almeida ou de Nhô Baltas, desde a língua mirandesa até às gaitas de foles e aos pauliteiros… E nos confins da Ásia, descobrimos mercadores e missionários a papiar a nossa língua franca, e para maior surpresa Fernão Mendes Pinto tornou-se o verdadeiro intérprete de João de Barros, o Velho, e de Diogo do Couto. E se Garcia de Orta descobriu tudo no Colóquio dos Simples, D. João de Castro revelou os mistérios do magnetismo e importou para a Europa as mais belas plantas da Ásia, enquanto Pedro Nunes abriu os caminhos da navegação pelos números e pelos astros. E de súbito ouvimos:

“O Portugal futuro é um país
Aonde o puro pássaro é possível
E sobre o leito negro do asfalto da estrada
As profundas crianças desenharão a giz
Esse peixe da infância que vem na enxurrada
E me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
É essa a forma do meu país
E chamem elas o que lhe chamarem
Portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
Ter a oeste o mar e a espanha a leste
Tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
E na avenida que houver à beira-mar
Pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
Mas isso era o passado e podia ser duro
Edificar sobre ele o Portugal futuro.”

Sim. Aqui está o enigma todo, que Carolina Michaelis procurou encontrar, sem melancolia, mas com o entendimento de que Amadis e Binmarder eram a matéria-prima que fazia deste cadinho um conjunto que permitia fazer sonhar com Pasárgada, sem esquecer os diálogos entre Todo o Mundo e Ninguém com as risadas em fundo de Maria Parda e com as revelações de Frei Dinis. “Mudam-se os tempos, muda-se a vontade; muda-se o ser, muda-se a confiança” … Mil tentativas há para definir a cultura, mas ninguém o fez melhor do que o nosso maior: “E afora este mudar-se cada dia, / Outra mudança faz de mor espanto, /Que não se muda já como soía”. Eis por que não poderíamos ter pensado este folhetim senão com fantasmas, sérios, presentes e poéticos, capazes de dizer: “Sonho que sou um cavaleiro andante, / Por desertos, por sóis, por noite escura, / Paladino do amor, busco anelante / O palácio encantado da Ventura”. Mas, em volta da Torre que imaginámos, mesmo escura, mesmo vazia, reuniam-se os antigos familiares “primos vestidos em séculos diferentes e com bigodes conforme a época”. E eis-nos perante o inefável Dom Raymundo, poeta e primo de Dom Afonso Henriques. Não foi por acaso que começamos por ele, ao lado de quem combateu contra os leoneses. Por isso aprendemos o mirandês. E o cavaleiro das aventuras percorreu os montes com Vilancete (que outro nome poderia ter o ginete?). O grande garrano da Ribeira de Lima acompanha-nos, seguido do falcão Abelardo, fiel auxiliar da nossa caça. E para compor o magnífico cenário, eis D. Mafalda, vestida a rigor, com os modelos aconselhados por Garrett, o janota, com desenhos de Watteau e Fragonard e a aprovação de Beckford, mas igualmente a princesa Brites, e sobretudo Madeleine, “prima que veio de Paris cheia de cores”, além de Frey Ciro, com cheiro de santidade e da Bruxa de São Semedo. Era lá possível viver-se sem um bruxedo a sério? Há fantasmas? Não há uma dúvida. Eles encontram-se onde menos se espera. Manuel Bandeira demonstrou-o. «E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d’água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada». Moral da história? Há sempre mais alguma coisa a contar. Percorra-se, por isso, de novo, cada um dos capítulos do folhetim e veja-se que todos contêm enigmas por resolver…

Subscreva a nossa newsletter