LEMBRAR OS CLÁSSICOS
«À medida que a nossa civilização passa a evoluir à deriva (ouvimos George Steiner), a literacia torna-se incerta. Como o chamado ‘pós-modernismo’ proclama, vale tudo. O que não significa que deixaremos de produzir e ler livros, alguns dos quais estimáveis, de visitar museus ou de construir salas de concertos. Continuaremos a fazer tudo isso. As audiências talvez cresçam. É muito o que se pode ler na Internet, ou admirar em reprodução holográfica…». No entanto, segundo o que nos é dado ver, a concorrência faz-se, em condições absurdas e viciadas, entre a qualidade e a fancaria. “Mandarins e artistas cada vez mais esporádicos multiplicarão esforços visando conquistar o estrelato no âmbito dos meios de comunicação de massa». Por isso, o intelectual fala sobre a necessidade de reintroduzir critérios de exigência que permitam a consagração de uma ordem de mérito que distinga «a excelência autêntica das formas de parasitismo que hoje proliferam como cogumelos» (Cf. Os Livros que Não Escrevi, Gradiva, 2008). George Steiner morreu há dias na sua casa de Cambridge. Nuno Júdice recordou no último número do JL o grande crítico de uma época em que “se sinalizaram o gosto e as tendências da nossa cultura contemporânea”. E lembramos uma conferência memorável na Gulbenkian em 2007. Hoje dou nota do facto de ter deixado a Nuccio Ordine o encargo de divulgar uma entrevista póstuma, com a condição de o fazer no dia seguinte ao falecimento do mestre, o que aconteceu nas páginas do “Corriere de la Sera”. A entrevista original data de 21 de janeiro de 2014, mas foi revista no ano passado. Nuccio Ordine começou por perguntar qual era o segredo mais importante que desejaria revelar nesta entrevista, e Steiner confessa que nos últimos 36 anos manteve um diálogo epistolar com uma interlocutora (cujo nome não revela), que considera um verdadeiro diário. Aí se encontram os sentimentos mais íntimos e reflexões estéticas e políticas. Essas cartas estão em Cambridge no Churchill College e apenas poderão ser consultadas depois de 2050. A ideia de uma entrevista póstuma sempre fascinou Steiner, com o objetivo de deixar uma mensagem para os que ficam e para despedir-se, deixando as suas últimas palavras. Em suma, trata-se de uma reflexão de conjunto e um balanço. “Nesta fase da vida as recordações do passado convertem-se no único e verdadeiro futuro interior”. Ao ser-lhe perguntado o que lamenta na sua vida, recorda o que afirmou na sua Errata, confessando não ter conseguido compreender alguns fenómenos essenciais da modernidade. A educação clássica, o temperamento e a carreira académica não lhe permitiu compreender completamente a importância de certos movimentos. Não entendeu devidamente a importância do cinema, como nova fase de expressão, reveladora da criatividade e de novas leituras, porventura mais ricas do que as clássicas da literatura e do teatro. Também não teria entendido o movimento contra a razão, o desconstrutivismo e alguns aspetos do pós-estruturalismo – bem como as repercussões do feminismo (que o próprio apoiou), e que assumiu uma função política e humana extraordinária.
O VALOR PARA CRIAR…
No plano pessoal ter-lhe-ia faltado “o valor para criar” – a literatura criativa poderia ter tido um significado importante, mas Steiner não quis assumir o risco transcendente de experimentar algo de novo e próprio na narrativa. Crítico, leitor, erudito, professor são profissões que amava profundamente, mas é completamente diferente a grande aventura da criação… “provavelmente é melhor fracassar no intento de criar do que ter um certo êxito no papel de parasita”. De facto, a distância entre os que criam literatura e os que comentam é muito grande. O crítico vira as costas à literatura, e muitos colegas universitários nunca lhe terão perdoado ter-se destacado mais do que muitos dos autores que estudou e analisou. E o que mais sofreu teve a ver com o facto de não ter aperfeiçoado muitos dos ensaios que escreveu, e que mereceriam melhoramentos. Em contrapartida, o que o tornou mais realizado foi o ter ensinado e ter vivido em muitos idiomas. O francês, o inglês, o alemão e o italiano foram os seus idiomas e a possibilidade de traduzir poemas nessas línguas e de ir ao encontro da essência cultural foi o que o tornou mais feliz. E quanto aos desafios não cumpridos? Muitas viagens não realizadas, livros que planeou e não se concretizaram, ou encontros que não teve, “por falta de valor ou disponibilidade ou energia”. Poderia ter conhecido Martin Heidegger – mas ainda jovem não o quis importunar. E a vitória mais saborosa? Foi insistir na ideia que a Europa continua a ser uma necessidade fundamental e que, apesar das ameaças e dos muros que se constroem, não deveremos abandonar o sonho europeu. Pode ser que tenha passado o momento alto europeu, mas o contributo do velho continente não pode ser subestimado, como fator criativo e civilizacional.
VALORES CULTURAIS
Daí a relevância e a necessidade dos valores culturais que não deixem abandonados ao consumismo e à mediocridade. G. Steiner sempre detestou o nacionalismo; por isso se demarcou do sionismo. Apesar de tudo, pensava no fim da vida que talvez pudesse ter combatido o chauvinismo e o militarismo em Jerusalém. Falando dos momentos tristes, lembra os amigos que já não podia voltar a encontrar e os lugares que nunca visitou. O certo é que a amizade tinha para si um significado enorme. Daí a importância dos amigos próximos, que nos últimos anos puderam dialogar e partilhar uma intimidade afetiva. “Talvez a amizade seja mais valiosa do que o amor – e isto porque a amizade não tem egoísmo nem o desejo carnal”. E quanto ao amor, recorda a importância do seu casamento, que não podia explicar-se racionalmente. “Creio que potencialmente as mulheres têm uma sensibilidade superior à dos homens”. E recorda o privilégio que teve por ter tido relações amorosas em várias línguas. Daí que considerasse que o donjuanismo poliglota foi uma ocasião de viver várias vidas. Depois de afirmar não crer em algo depois da morte, diz estar convencido que o momento do passo pode ser muito interessante. E termina a entrevista, pedindo desculpas a um amigo íntimo, durante muito tempo, com quem rompeu por um episódio de somenos. “Aprendi muito com essa experiência, como às vezes um instante sem importância pode transformar-se num facto decisivo na vida”. O entrevistador recordava ainda a proverbial irascibilidade do escritor, uma das características da sua personalidade, mas o interlocutor confessa que os anos lhe ensinaram a moderar-se, o que não impediu que tenha pago um preço caro pela sua ironia, amiúde muito mordaz, nem sempre bem recebida – o que levou, por desgraça, ao longo dos anos, a colecionar muitas hostilidades e a romper muitas amizades… Um dia Steiner disse que os Antigos são do amanhã, e acrescentou que desejaria que um livro seu dentro de muitos anos pudesse ser útil a alguém. Afinal, que são as humanidades senão a compreensão de um tempo longo de memória?
Guilherme d’Oliveira Martins
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