CRÓNICAS E ENSAIOS
Começando pela designação de crónicas, devo dizer que muitas vezes estamos perante verdadeiros ensaios, género em que Lídia Jorge muito bem se evidencia há muito. Basta lembrarmo-nos de Contrato Sentimental (2009) para ficar claro como a romancista sabe muito bem lidar com a reflexão, não apenas na construção romanesca, mas também na consideração dos problemas mais relevantes da vida contemporânea e na busca de um sentido ético, cívico e existencial para a humanidade. Partindo do quotidiano, chegamos depressa à essência das coisas. Se durante a crise financeira de 2008, a autora deixou-nos considerações extremamente pertinentes sobre as ilusões do curto prazo, sobre a idolatria dos bezerros de ouro e sobre a tentação de oscilarmos entre considerarmo-nos “heróis do mar” ou ser lixo no perverso julgamento das agências de rating, encontramos a preocupação essencial de ir ao encontro da compreensão de que o tem mais valor não tem preço. E, ao contar uma história passada consigo, quando procurava desesperadamente uma capa para o modelo já desatualizado de telemóvel (com apenas três anos de idade), lá descobriu graças a uma balconista zelosa um utensílio de aspeto rebarbativo mas no essencial útil, ainda por cima com um inesperado desconto por se estar num Black Friday… Mas porquê uma tal designação tão estranha? Ao que parece (num tempo de tantos pruridos e más consciências) a explicação parece ser esta: na cidade do Cabo, na África do Sul, “diz quem, mostra as gaiolas da escravatura que antigamente, em certos dias de sexta-feira, antes do fim-de-semana, os escravos mais franzinos, os mais velhos, os que não tinham dentes, eram vendidos ao desbarato…”. A explicação é bizarra, mas convincente. O seu uso nos dias de hoje revela-se absurdo, pois a expressão esclavagista não poderia ser mais evidente, quando temos necessidade do mais elementar bom senso, em especial no respeito efetivo dos direitos fundamentais, em lugar de ressentimentos e complexos. E Lídia Jorge termina a reflexão, dizendo: “enganemo-nos uns aos outros, compremos inutilidades sem fim. Mas, na dúvida, não lhe chamem Black Friday”…
MONTAIGNE E O AMIGO
E se falo do tom ensaístico, não posso deixar de apontar um verdadeiro ensaio testemunhal intitulado “Montaigne e o Amigo”, a propósito da oferta que Pierre Léglise-Costa, um amigo comum, lhe fez e do avisado conselho que deu a Lídia – “Relê o capítulo sobre a amizade, e lê este livro, o do amigo desaparecido, que Montaigne fez publicar”. Devo acrescentar que estava em causa La Boétie, o autor do magistral “Discurso da Servidão Voluntária”, que não teria chegado até nós se não fosse Montaigne, não apenas pela amizade, mas pelo reconhecimento do génio do seu amigo. “Si on me presse de dire pourquoi je l’aimais, je sens que cela ne se peut exprimer, qu’en répondant: ‘Parce que c’était lui, parce que c’était moi’”. É uma das mais belas referências à amizade na literatura de sempre. E Lídia e Pierre conversaram sobre isso. E falaram do “fruto da clarividência que sobressai nas grandes épocas de perda e de ameaça…” e no que acontece “quando um olhar inteligente abrange de relance o passado e o futuro, percebendo que o tempo histórico se desloca por ondas de avanço e recuo, e dessa inquietação surge uma proposta nova”. Ainda no registo do ensaio, somos levados a um poema de Emily Dickinson, com tradução de Ana Luísa Amaral, na exposição sobre o Cérebro, na Gulbenkian. “O poema de Emily Dickinson promete, além da vastidão, uma fusão entre matéria e espírito, e um sentido”… “Mais vasto o Cérebro – que o Céu – / Pois – lado a lado os põe – / E um facilmente conterá / O outro – e a Ti – também. / Mais fundo o cérebro que o mar – / Pois – mede-os – Azul a Azul – / E aquele o outro absorverá / Tal como – o Balde – à Esponja – / Um peso igual, Cérebro e Deus – / Pois – Pesa-os – Libra a Libra / E a distinção – se tal houver – / É como o som da sílaba”. A relação entre a Arte e a Ciência torna-se avassaladora, sendo biunívoca, como a criatividade e o paradoxo dos pequenos robôs. E, num momento, a ensaísta, pronta a perceber a liberdade e a determinação, vê-se impedida de voltar atrás, ao princípio, pela lógica do espaço e do tempo…
COMO AMAREMOS A EUROPA?
Os temas sucedem-se. Numa tentativa de definição da Europa, partindo de um poema do mexicano José Emílio Pacheco, diz-nos: “talvez nós não amemos a Europa, mas se fosse necessário, ainda que soasse mal, talvez déssemos a nossa vida para preservar alguns dos seus incunábulos, algumas das suas catedrais, algumas das suas sinfonias, ou o estado social que nos aproxima uns dos outros. Depois de tanta batalha sangrenta, tantas fonteiras de ferro, cidades vizinhas inimigas de morte, a proposta de uma moeda única e de livre circulação de pessoas e bens é uma oferenda de paz que se faz aos mortos”… E, falando do mais nobre dos conceitos de dignidade e de identidade, lemos o testemunho do encontro da jovem Lídia com o avô José Jorge Júnior. “A casa já cá não está, porque tudo se transformou num espaço raso onde os tomilhos vão crescer, mas contrariando o descampado aberto, onde nada ficou, eu vejo a entrada da casa do Aroal como ela era, ouço uma voz e vejo a silhueta de um homem idoso sentado, de perfil, como se o ultimo encontro com o meu avô Jorge tivesse acontecido ontem. Foi há muito tempo”… É a marca da memória que aí está bem expressa. Mas também no exemplo sublime da Maria Inácia, que eu conheci bem de toda a vida, e que pôde defender heroicamente o órgão de Boliqueime – num extraordinário paralelo com a memória de Leipzig, das igrejas de S. Nicolau e de S. Tomé… É verdade que não era a memória de Bach a estar em causa, mas sim a opus 24 de 1789 construída por António Xavier Machado e Cerveira, irmão de Machado de Castro… E que há de mais importante senão uma memória viva?
O encontro com Agustina neste conjunto de crónicas é fantástico, no sentido literal do termo. Não vou, obviamente, contar a peripécia, mas posso dizer que é digna de um mistério romanesco, mais de Edgar A. Poe do que de Simenon – o pobre, coitado. Tudo começou numa viagem de comboio, e na descoberta por Agustina de um português, sem que Lídia Jorge pudesse suspeitar. Ninguém se parecia com a típica imagem de um português emigrante. Mas, a verdade é que Agustina tinha toda a razão, era mesmo um português, que ali apareceu com grande prosápia literária. A autora de Sibila identificara-o pelo mover dos lábios. Foi surpreendente o acerto… “Curiosamente, é um homem de compleição germânica, que já se levanta, já se aproxima, curva-se na direção do nosso assento e começa a falar português”. Nada devo dizer mais, porque o que se vai passar só é relevante se for descoberto pelo leitor, na descrição minuciosa de Lídia Jorge e no carácter inimaginável de Maria Agustina…
Guilherme d’Oliveira Martins
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