Marcel Proust (1871-1922) foi o memorialista da sociedade em que nasceu e viveu. “Em Busca do Tempo Perdido” (1913-1927) é a sua obra-prima, em que o elemento romanesco tem a ver com a própria memória viva que o escritor nos transmite. É a “pura substância de nós que é uma impressão passada”. Há muitas personagens, há muitas histórias, mas sobretudo é o fim da “Belle Époque” que retrata – um tempo de mudanças profundas, em que se passa da ilusão de um tempo de felicidade para um período tremendo de tragédia e barbárie. Nada parece prenunciar essa evolução, mas a verdade é que Proust morre no momento em que tudo se começa a precipitar. Dir-se-ia que o “enrichissez-vous!” de Guizot na monarquia de julho chegou ao limite. Proust retrata a consumação do que Louis-Philippe desejara, tornando burguesa a ambição de Napoleão. Mas a História apresenta muitas vicissitudes – e o ano do nascimento de Proust já anunciava todos os desastres: a derrota de Luís Napoleão, a proclamação do Reich em Versalhes e o poder da rua na Comuna. Como quem tira uma fotografia no fim da festa, quando os convivas estão a sair, e pede-se-lhes que fiquem um minuto para tirar a fotografia de família, Proust consegue que todos lá estejam, dando a aparência da felicidade, tão fugaz… Luísa Costa Gomes tem razão quando diz: «volto a Proust sempre, porque as descrições são extraordinárias, e aquelas tias (mas aqueles salões, as conversas nos salões!…) e a linguagem banha tudo, transforma tudo, empapa tudo, e o que se me impõe é apenas o fantasma de um homem fechado num quarto e em si próprio, a escrever». Proust percebe que tem de ficar no quarto, com as cortinas fechadas, porque no Boulevard Haussmann já começam a sentir-se sinais do fim. E tudo é diferente dos cavalheiros de indústria dos Buddenbrook… Em português contamos com a esplêndida tradução de Pedro Tamen, dos sete volumes: Do Lado de Swann; À Sombra das Raparigas em Flor; O Lado de Guermantes; Sodoma e Gomorra; A Prisioneira; A Fugitiva : Albertine Desaparecida e O Tempo Reencontrado. E o experimentado tradutor afirma: “É uma daquelas obras que conferem carácter, como o batismo aos cristãos. Carácter no sentido grego do termo, o que imprime uma marca identidade, diferenciação. No caso, em quem a lê. Não se fica como antes depois de ler a Recherche”. De facto, é o género humano que aqui encontramos a cada passo. Há demasiada indiferença e quase ninguém se apercebe de que tudo vai cair como um baralho de cartas. Hoje percebemos isso, e mais: sabemos que a tragédia sempre espreita… “E de repetente a recordação surgiu-me. Aquele gosto era o do pedacinho de madalena em Combray, ao domingo de manhã (porque nesse dia não saía antes da hora da missa), a minha tia Léonie, quando lhe ia dar os bons dias ao quarto, me oferecia depois de o ter ensopado na sua infusão de chá ou de tília. A visão da minúscula madalena nada me fizera lembrar até a ter provado; talvez porque tendo-as visto muitas vezes depois disso, sem as comer, nas prateleiras das pastelarias, a sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outras mais recentes; talvez porque dessas recordações abandonadas durante tanto tempo nada sobrevivia fora da memória, tudo se havia desagregado; as formas – e também a da conchinha de pastelaria, tão gordurosamente sensual no seu pregueado severo e devoto – tinham sido abolidas, ou ensonadas haviam perdido a força de expansão que lhes permitia chegar à consciência. Mas quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das coisas, apenas o cheiro e o sabor mais frágeis mas mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer-se lembrados, à espera sobre a ruína de tudo o resto, a carregar sem vacilações sobre a sua gotinha quase impalpável o edifício imenso da memória”. Tudo aqui!
Agostinho de Morais