LEMBRAR EDUARDO TEIXEIRA COELHO
Desta vez, com José Ruy, mestre indiscutível da nona arte, e João Manuel Mimoso, cultor desse apaixonante tema, tratou-se de homenagear Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005), referência fundamental nas histórias aos quadradinhos em Portugal, o mais internacional dos nossos autores, cujo centenário do nascimento ocorre em 2019. Se é certo que a popularidade da Banda Desenhada em Portugal não oferece dúvidas, a verdade é que no panorama mundial não temos referências essenciais reconhecidas. Mas tal não significa que passe despercebido o lugar de Portugal – e, no tocante a autores nacionais, Eduardo Teixeira Coelho (ETC) é uma exceção, uma vez que trabalhou em França e em Itália, a partir de 1953, ano em que “O Mosquito” (1ª série) deixou de se publicar. Então teve uma atividade intensa em relevantes publicações dos países onde esteve, destacando-se pessoalmente pelas qualidades demonstradas no plano artístico e no domínio das narrativas ilustradas, com uma identidade própria e uma especial originalidade. No entanto, quando saiu de Portugal já atingira uma inequívoca maturidade, afirmando-se como um autor reconhecido por todos pela sua excecional qualidade. Nascido em Angra do Heroísmo, começou a colaborar no “Sempre Fixe”, com apenas 17 anos, e a partir de 1943 vemo-lo nas páginas de “O Mosquito”, ao lado de Raul Correia, constituindo uma dupla influente e talentosa. “O Mosquito” foi lançado em 1936, dirigido por António Cardoso Lopes (Tiotónio, autor de Zé Pacóvio e do Grilinho) para responder a “O Papagaio” de Adolfo Simões Müller, criado em 1935 – onde foram publicadas as primeiras aventuras de Tim-tim, tendo na sua equipa pessoas como Júlio Resende e José Viana. “O Mosquito” atingiu uma tiragem de 70 mil exemplares (o que é impressionante), ao preço de cinquenta centavos, metade de um escudo, o preço da concorrência. Foi inicialmente semanário até 1942, e depois bissemanário, às 4ªs e aos sábados, dias em que os liceus não tinham aulas à tarde… “O Mosquito” publicou estórias de autores britânicos, como Roy Wilson; espanhóis, como Jesus Blasco (criador de Cuto), americanos como Harold R. Foster (autor de “Príncipe Valente”) – além dos portugueses ETC, Vítor Péon, José Garcês e José Ruy. A lista de publicações de ETC em “O Mosquito” é notável, devendo referir-se “Os Guerreiros do Lago” (1945); “Os Náufragos do Barco sem Nome” (1946); “Falcão Negro” (numa tentativa de lançar um herói, que pudesse perdurar, mas apenas se manteve até de 1946 a 1949): “O Caminho do Oriente” (1946-48); “Sigurd, o Herói” (1946); “A Lei da Selva” (1948); “Lobo Cinzento” (1948-49); “A Torre de D. Ramires” (adaptado da “Ilustre Casa” de Eça); “O Defunto” (1950); “Suave Milagre” (do conto também de Eça); “Os Doze de Inglaterra” (1950-51) e “A Ásia” (1952). Assina algumas capas do “Cavaleiro Andante”. O esmero e a qualidade vão-se afirmando, quer no tratamento gráfico, quer nas narrativas e na escolha dos temas. A vida dos celtas e dos povos nórdicos, a presença dos animais na natureza, a História de Portugal, as tradições culturais – de tudo encontramos numa versatilidade fantástica e numa inesgotável capacidade de trabalho, sem cedências no tocante à exigência artística.
UM PORTUGUÊS ALÉM-FRONTEIRAS
O caso de “Os Doze de Inglaterra” merece atenção. Trata-se de uma das obras-primas de ETC – recentemente reeditada (Gradiva, 2016), graças ao inexcedível trabalho de recuperação de José Ruy, sobre o episódio relatado em “Os Lusíadas” no canto VI por Fernão Veloso, no qual se contam as aventuras do célebre “Magriço”, Álvaro Gonçalves Coutinho, que passa por mil aventuras e glórias e chega a Inglaterra, quando todos os onze companheiros desesperavam, para defender, com sucesso, a honra de doze donzelas ultrajadas, que haviam solicitado o auxílio de tão intrépidos cavaleiros. ETC baseou-se em Camões de na obra de António Campos Júnior, “Ala dos Namorados” (Edições Romano Torres, 1905) e daí resultou o magnífico álbum disponível nas livrarias. Nele se sente a influência de Harold Rudolf Foster (1892-1982), o célebre autor do “Príncipe Valente”, série iniciada em 1937. Aliás, os anos trinta são decisivos para o desenvolvimento moderno dos “comics” nos Estados Unidos e dos quadradinhos (BD) na Europa. Em 1939 foi criado o “Super-homem”, graças a Jerry Siegel e Joe Schuster, e em 1928 nasceu o Rato Mickey de Walt Disney, para concorrer com o Gato Felix de Otto Messmer (1919). Dez anos antes nascera Tintin e a Escola da Linha Clara, com Hergé, e a revista Spirou (da chamada Escola de Marcinelle) surge em 1938… Voltando a Harold Foster e a ETC, ambos dispensam os balões para os diálogos, enquanto Foster escolhe o período compreendido entre o final do Império Romano e o início da Idade Média, integrando-se no ciclo bretão que envolve a tradição céltica, o rei Artur, os Cavaleiros da Távola Redonda, Camelot, Merlin, Sir Galahad e Lançarote do Lago, o português escolhe o início da dinastia de Avis e a Ínclita Geração, invocando a Rainha vinda de Inglaterra e a origem da mais antiga aliança do mundo. Pode dizer-se que ETC atinge aqui a sua maturidade, o momento mais fecundo e de mais nítido domínio da ilustração. Há uma articulação perfeita entre a evolução da aventura e a apresentação das imagens, que se sucedem a um ritmo cinematográfico (como o autor desejava), impulsionando o movimento, a intensidade da identificação e a representação das personagens. E se as influências de H. R. Foster são evidentes, ETC cedo se libertou das amarras de qualquer seguidismo, demonstrando a sua excecional personalidade artística.
AO ENCONTRO DO ELDORADO
Quando ETC decide emigrar para França em 1953 vai usar o pseudónimo Martin Sièvre e colabora no semanário “Vaillant”, depois “Pif Gadget”, até 1970, com “Ragnar, o Viking”, “Till Ulenspiegel”, “Davy Crockett”, “Yves Leloup”, “Robin Dubois”, “Le Furet”, “Ayak”, “Erik le Rouge” e “Pipolin les Gaies Images” (1957-63), para os mais novos. É um período de grande produtividade, notando-se uma evolução na técnica usada, que corresponde à influência sentida pela moderna Banda Desenhada europeia, que ETC bem conhecia. No entanto, as grandes qualidades mantêm-se evidentes, continuando a ser reconhecido pelos melhores cultores. Em Portugal foi o “Mundo de Aventuras” que publicou a tradução de algumas dessas obras. A partir de 1970, trabalha em Itália, também com reconhecimento, sendo premiado como o prestigiado “Yellow Kid” do festival de Lucca. Jorge Molder, no magnífico Catálogo da Exposição organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em fevereiro de 2000, “Banda Desenhada Portuguesa Anos 40 – Anos 80”, comissariada por João Paulo Paiva Boléo e Carlos Bandeiras Pinheiro, faz justiça à importância da obra de ETC, apresentando-se na capa uma genial ilustração tirada de “O Mosquito”, número 673 (1945).
Guilherme d’Oliveira Martins
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