NOVAS ASPIRAÇÕES EUROPEIAS
«Precisamos de integrar plenamente os países com aspirações europeias” – afirmou Mário Draghi, primeiro-ministro italiano no Parlamento Europeu. Em nome de um “federalismo pragmático”, o governante pôs o dedo na ferida. De facto, há muito que necessitamos de uma abertura corajosa relativamente à construção europeia. Não se trata de seguir um caminho ilusório ou de dar um salto no escuro, mas de uma exigência que permita fazer da construção europeia um corpo político que possa enfrentar a crise múltipla que vivemos, e que tende a agravar-se, nos campos humanitário, energético, económico e de segurança. Os desafios são os da paz e do estabelecimento de relações estáveis no velho continente, abrangendo os países do centro e do leste da Europa, obrigando a uma nova arquitetura que aprofunde o que está concretizado em sessenta anos e que abra novos horizontes, não apenas relativamente à Ucrânia, mas também para a Albânia e a Macedónia do Norte, ou para o Kosovo e a Bósnia-Herzegovina. Estão em causa a União Europeia, o Espaço Económico Europeu, o Conselho da Europa, a OTAN e a OSCE. E só com esta enumeração percebemos que há uma grande complexidade na definição futura das soluções que abranjam o Atlântico e o Mediterrâneo, as relações com a Federação Russa e a República Popular da China, os direitos humanos, o comércio internacional, a globalização e uma cultura de paz. Tudo obriga a garantir o cumprimento da Carta das Nações Unidas, a respeitar a soberania dos Estados soberanos no âmbito da paz e da guerra e a salvaguardar o primado da lei e do direito. De facto, não há soberania ilimitada, nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser considerada letra morta. E Draghi foi muito claro: “As instituições fundadas pelos nossos antecessores serviram bem os cidadãos europeus nas últimas décadas, mas são desadequadas para a realidade atual”.
FEDERALISMO PRAGMÁTICO
A ideia de “federalismo pragmático” deverá, assim, incluir os processos de tomada de decisão conjuntos para os setores da economia, energia, defesa e política externa. Há que avançar para maiorias qualificadas em decisões fundamentais, já que precisamos de uma União que possa decidir em tempo útil, poupando vidas e recursos. Se a guerra iniciada pela Federação Russa contra a Ucrânia pôs à prova a unidade europeia, o certo é que há interesses vitais comuns que têm de ser salvaguardados solidariamente – no tocante às sanções, ao embargo ao petróleo russo ou ao pagamento em rublos do gás natural, em violação do princípio “pacta sunt servanda” e do cumprimento dos compromissos comerciais assumidos… “Agora é o momento para agir”, quer perante os apelos a uma decisão política, como os de Volodymir Zelensky, quer quanto à resposta à chegada de migrantes. E o mesmo se diga no domínio das incertezas económico-financeiras ditadas pelas consequências das últimas crises de recursos, sanitária e bélica. Contudo, perante a diversidade de atores e interesses e a heterogeneidade de situações, impõe-se agir em vários tabuleiros, com métodos diferenciados, que não se limitem a seguir as conveniências do curto prazo. O sinal político de solidariedade e de entendimento não pode confundir-se com um alargamento europeu frágil, precipitado e insuscetível de sucesso. E Draghi conhece bem o método adequado, lembrando as cautelas que tomou no Banco Central Europeu na crise financeira, para que não ocorresse o choque fatal entre a panela de barro e a panela de ferro. Se precisamos de regras que protejam todos, é fundamental rever o modo de funcionamento das instituições europeias e os seus objetivos, que devem ser menos ambiciosos do que agora, centrando-se na paz, na segurança, no desenvolvimento humano sustentável e na diversidade cultural. Como afirmou Jean-Paul Fitoussi, há pouco falecido: “ou a Europa muda ou os povos abandonarão a ideia”. Urge prevenir esse risco. Eis o que tem de estar bem presente na nossa mente, porque precisamos do projeto europeu, mais do que nunca. Como vimos na crise pandémica, sem cooperação seria a catástrofe. A reação à guerra da Ucrânia foi um sobressalto. Mas tal não basta. Há que distinguir os efeitos comuns de todos e o interesse de cada povo. Longe da tentação burocrática uniformizadora, impõe-se criar um verdadeiro sistema de geometria variável. Em vez da oposição entre sul e norte, entre beneficiários e “frugais”, importa deixar claro que a fragmentação europeia será fatal para todos. Tem de haver uma consciência comum que permita privilegiar equidade e eficiência, justiça e desenvolvimento humano. E as novas instituições deverão privilegiar a legitimidade democrática e o respeito dos direitos fundamentais. Daí a necessidade de representar os Estados (num Senado igualitário) e os cidadãos, proporcionalmente. Novos membros deverão ver preservada a sua independência, com um apoio à reconstrução, semelhante ao do Plano Marshall, adaptado ao nosso tempo. O “federalismo pragmático” corresponde ao combate ao centralismo e à fragmentação, favorecendo a cidadania ativa e responsável e não uma fortaleza. Reforçar a decisão e a relevância das instituições europeias obriga a transferências equilibradas de soberania no seio da União Europeia, com menos centralismo e burocracia e mais descentralização, proximidade e participação cívica. A aceleração do processo de integração pressupõe a preservação da legitimidade dos Estados e a representação e participação dos cidadãos. Ter-se-á, assim, de pensar em alterar os Tratados, em nome da sobrevivência, mudando a unanimidade e o sistema pernicioso de vetos cruzados e avançando para as maiorias qualificadas. Talvez a pandemia e a guerra da Ucrânia tenham mudado as perceções sobre a nova realidade política. Cada Estado, só por si, não tem condições para apresentar remédios para a crise. E devemos ouvir Denis de Rougemont a dizer-nos que o Estado-nação é grande demais e pequeno demais, exigindo a subsidiariedade. Draghi insiste: “uma Europa capaz de tomar decisões no tempo certo é uma Europa mais credível perante os seus cidadãos e o mundo”. Afinal, Putin avançou contra a Ucrânia acreditando na fragilidade europeia, sobretudo depois das diatribes do Senhor Trump, alter ego do imperador russo. Não se pense, porém, que será fácil encontrar novas soluções, ou que as respostas imediatas são suficientes. No domínio internacional e da segurança, há interesses e valores comuns que devem prevalecer, em lugar da subordinação dos países pequenos e periféricos relativamente aos mais poderosos. Como tem salientado Mariana Mazzucato (Economia de Missão, Temas e Debates, 2021): as respostas para o desenvolvimento “dependem da organização da economia, mais do que da mera quantidade de dinheiro gasto para resolver os problemas. Dependem das estruturas concretas, da capacidade e dos tipos de parceria entre os setores público e privado. Exigem também uma visão para imaginar um mundo diferente”. É de cultura que falamos. Precisamos do entusiasmo pela ação, do autogoverno baseado no valor ético da liberdade, do valor mobilizador do bem comum, da inovação baseada na experiência, do cuidado e do serviço público de qualidade, sem o que nos faltará o que Saint-Exupéry designava como a aprendizagem pela ânsia da imensidão infinita do mar.
Guilherme d’Oliveira Martins
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