UM EXERCÍCIO ROMANESCO
Verdadeiramente, estamos perante um autêntico exercício romanesco que se estende no tempo, mas que procura centra-se em diversos espaços. Trata-se, assim de um poderoso exercício de imaginação que parte da informação dada pelas fontes originais. Tudo começou quando Gianni Guadalupi (1943-2007), um “viajante sedentário”, teve a ideia de escrever um guia turístico para Selene, a cidade dos vampiros, do romance do francês Paul Féval (1816-1887), sobre as cautelas a ter quanto aos vampiros, onde se podia comer e dormir ou não se devia estar de modo algum. Guadalupi traduziu para italiano autores como Kipling, Borges, Allende e Benedetti, editando diversos livros e antologias dedicados a viagens, reais e imaginárias. Estudou temas diversos, como os jesuítas na China, os viajantes setecentistas na Pérsia e no Oriente, os portugueses na Índia ou a descoberta da América e os pioneiros aeronáuticos italianos. Publicado originalmente em 1980, o Dicionário de que falamos foi aumentado em 1987 e 1999 e integra não só lugares previsíveis do mundo literário como Ruritânia, Shangri-La, Xanadu, Atlântida, Oz, o País da Maravilhas de Lewis Carroll, Utopia, Nárnia, os países de Gulliver, a ilha de Crusoé, mas também as criações de Tolkien, Dylan Thomas, Edgar Rice Borroughs, Conan Doyle ou de Cervantes e Rabelais… Se é verdade que o ponto de partida foi o encontro com a literatura conhecida, a-pouco-e-pouco o universo foi-se alargando, para lugares que um viajante pudesse querer visitar, deixando de lado os céus, os infernos e o futuro, e incluindo apenas o nosso planeta. Excluíram-se lugares como Balbec de Proust, Wessex de Hardy, Yoknapatawpha de Faulkner e Barchester de Trollope por verdadeiramente serem disfarces de lugares reais. E, a partir daqui, houve uma escolha em que o imaginário e a verosimilhança se foram articulando e afinando. E houve que ilustrar o livro, com rigor e sobriedade, e assim foram escolhidos Graham Greenfield e Eric Beddows, e James Cook para os mapas.
UMA ANTIGA NECESSIDADE
“É muito antiga a necessidade de inventar países e depois dizer como o autor os encontrou”. Assim aconteceu com a “Epopeia de Gilgamesh”, que é uma crónica da viagem de um rei ao Reino dos Mortos ou com a “Odisseia”, em que Ulisses viaja entre Troia e Ítaca…De facto, nos primórdios, as ilhas imaginárias foram gregas: a ilha dos Ciclopes, o reino de Circe, a sociedade da Atlântida. Os árabes também imaginaram ilhas. “As Mil e Uma Noites” têm ilhas mágicas que vogam nos mares, transformam-se em baleias ou voam nos céus. No entanto, a verdadeira geografia imaginária das ilhas surge com Thomas Morus em “Utopia”, que propositadamente é batizada como não tendo lugar algum, donde vem um português, Rafael Hitlodeu. Tendo arquitetado a obra com Erasmo de Roterdão, Morus ganhará muitos seguidores, como Campanella, Bacon, Rabelais, Voltaire, Fourier, Montesquieu, Huxley, H. G, Wells – segundo o método ideal didático – positivo e negativo – baseado numa alegoria, que se contrapõe às sociedades reais vividas por cada um. A ilha de Crusoé é real, mas o autor concede liberdade a Robinson, para dar ênfase à importância da singularidade. Já Jonathan Swift faz Gulliver viajar ao encontro de sociedades que são autênticos “espelhos deformadores” do nosso próprio mundo: em Lilliput tudo é pequeno e ridículo, em Brodingnag tudo é enorme, o que leva o rei desse lugar distante a comparar os homens a pequenos vermes desprezíveis. A ilha de Laputa, que voa nos céus, e Lagado levam Swift a denunciar projetos científicos ilusórios, enquanto em Glubbdubdrib, ilha de feiticeiros e de mágicos, as mentiras dos historiadores são postas a nu, enquanto, na ilha dos Houyhnhms, os brutais yahoos são cavalos que no fundo se assemelham a nós. E no esteio do crítico severo e implacável que Swift foi, encontraremos autores modernos como Bioy Casares, Italo Calvino, Haruki Murakami, Garcia Marquez e Umberto Eco.
UM DICIONÁRIO ESPECIAL
As 1200 entradas deste Dicionário permitem viajarmos no inesgotável mundo da imaginação. E podemos encontrar das mais antigas referências deste repositório logo na Atlântida, “vasto continente-ilha submerso sob as águas do Atlântico por volta de 9560 a. C.” e referenciado desde Platão até Conan Doyle. E não podemos deixar de associar aos Açores e à Macaronésia… Mas lembramos ainda a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, com Calemplui, a ilha ao largo da costa da China, na foz de um dos grandes rios, rodeada por uma muralha de 26 palmos de altura, construída com lajes tão perfeitas que a parede parece feita de uma só peça. E ciclo bretão? Camelot, capital do reino de Logres no sul de Inglaterra, é a corte do rei Artur, não podendo esquecer-se Avalon e mediatamente o célebre Amadis de Gaula. E continuando com referências próximas e conhecidas, José Saramago traz-nos a Ilha dos Cegos. Misteriosamente, Nedim Gürsel leva-nos ao Cemitério dos Livros Não Publicados, estranho armazém de obras impossíveis, daí devendo partir-se para o Reino da Imaginação, lugar sempre verdejante, governado por uma imperatriz bondosa, secundada pela embaixadora princesa da História e pela controversa Madame Moda. E, em contraponto, Jorge Luís Borges lembra a estranha Cidade dos Imortais, em tempos habitada por Homero e onde Joseph Cartaphillus, antigo comerciante de Esmirna, deve ter encontrado um antídoto eficaz contra o estigma, pois morreu a bordo do «Zeus» em outubro de 1929 e foi enterrado na Ilha de Ios. Já Ishmaelia é o país em que Evelyn Waugh celebrizou por engano um pobre jornalista. Tolkien põe-nos na Terra Média, onde encontramos a raiz da História na música de Eru ou Iluvatár, origem de toda a criação e o mais poderoso dos seres. Eru possui a Chama Imperecível que animou os Ainur, os Sagrados, a primeira das suas criações… E Umberto Eco inventa a Ilha da Véspera “porque os visitantes são incapazes de fixar um ponto no espaço a partir do qual se possa medir o tempo, o que torna impossível inscrever a Ilha no presente…” E num movimento sempre tão intenso, não poderemos deixar de lembrar, como corolário de tudo, Xavier de Maistre na sua viagem à volta do quarto de 1794, talvez o mais criativo de todos os lugares imaginários…
Guilherme d’Oliveira Martins
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