Um círculo ameaçador manifesta-se na Europa, gerando a reação do «salve-se quem puder», com esquecimento de que a fragmentação e a tribalização apenas terão como consequência a multiplicação da instabilidade e a escalada do medo e da violência, numa espécie de instinto de defesa inconsequente, com resultados claramente contrários aos que se poderia desejar.
E assim chegamos a uma situação paradoxal – havendo, mais do que nunca, necessidade de Europa, de coordenação de políticas, de gestão de espaços e territórios e de partilha de responsabilidades, presenciamos a multiplicação de uma atitude puramente defensiva, baseada no temor da imigração e da presença das diferenças. Como aconteceu nos anos trinta do século XX, em lugar da cooperação surge a reação nacionalista e a ilusão do protecionismo – num momento em que se torna necessário distinguir os diversos níveis da subsidiariedade. A dimensão local e a participação dos cidadãos deve ser incentivada, uma vez que permite um melhor acompanhamento e responsabilidade na administração dos recursos disponíveis. Os corpos intermédios devem tornar-se instituições de mediação, capazes de favorecer a participação e a partilha de responsabilidades – por exemplo os orçamentos participativos devem constituir oportunidade para a adoção de prioridades que vão ao encontro dos mais legítimos interesses da comunidade e de uma integração equilibrada das pessoas e dos cidadãos. Urge compreender que, na expressão de Rougemont, o Estado tornou-se grande demais e pequeno demais para responder à moderna realidade social. É grande demais uma vez que o centralismo e a burocracia tendem a esquecer os problemas concretos e as especificidades dos microcosmos sociais que formamos. Mas o Estado é também pequeno demais, uma vez que em questões como o meio ambiente, a prevenção relativamente às mudanças climáticas, a segurança, a defesa e a causa da paz torna-se indispensável reunir esforços e garantir coordenações que favoreçam as complementaridades. O princípio da subsidiariedade não é assim uma abstração – importa perceber que o que deve ser resolvido na proximidade e o que exige coordenação e visão de conjunto e que as lógicas nacional e supranacional têm de ganhar o seu espaço próprio.
Os egoísmos nacionais, a fragmentação e a tribalização apenas reforçam a desregulação, a fragilização dos mecanismos democráticos e a subalternização da cidadania. O reforço dos parlamentos nacionais é uma resposta necessária, de modo que haja um encadeamento eficaz de decisões, e os cidadãos possam ter voz ativa – e senti-lo. A oposição democracia representativa / democracia participativa é um falso dilema – uma vez que a representação e a participação são faces da mesma moeda – como o é a liberdade e a igualdade ou a igualdade e a diferença, os direitos e os deveres ou a igualdade de oportunidades e a correção permanente das desigualdades. No fundo, a democracia só pode aperfeiçoar-se se partir das ideias de imperfeição e de perfetibilidade. E a subsidiariedade diz-nos que devemos compreender o carácter complexo das sociedades humanas, com diversos níveis de legitimidade e de responsabilidade.
Eduardo Lourenço tem repetido, com a lucidez que lhe conhecemos, que “a Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa (nós, portugueses) temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa”. Há ameaças e perigos, e até a indiferença e a acomodação. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. Contudo, a Europa que se fecha é incapaz de levantar voo. Importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um pequeno e eficaz núcleo de interesses e valores comuns. O perigo da não-Europa espreita como o risco da não-democracia. Mais do que o dilema entre mais e menos Europa do que se trata é de encontrar a responsabilidade europeia adequada. Do que se trata é de conseguir maior relevância na cena internacional e garantir menos desigualdade, menos injustiça distributiva e melhor representação dos cidadãos. A crise europeia deve-se à ausência de um ideal mobilizador e à falta e de uma coordenação política capaz de romper com a estagnação e de assegurar uma convergência social que permita aos cidadãos europeus sentirem-se não só participantes mas também incluídos, num desenvolvimento humano justo, baseado na qualidade de vida e no bem-estar – mas essencialmente no respeito da dignidade humana. E quem acredita na importância do projeto europeu, menos como utopia, e mais como um meio de garantir a paz e a cooperação, tem de fazer do compromisso político, cívico, social, cultural e económico, algo de concreto, com resultados. Lembrando-nos de A.J.P. Taylor, cabe perguntar qual o denominador comum entre os ideais e o senso comum…
Guilherme d’Oliveira Martins