A Vida dos Livros

De 9 a 15 de março de 2015

As «Correntes d’Escritas» na Póvoa de Varzim são já um momento essencial da vida cultural portuguesa. Ao perguntar na abertura «Quem tem medo da Cultura?» mais não fiz do que pôr a tónica na defesa das humanidades e da qualidade contra a indiferença e a mediocridade…
 

UMA PERGUNTA ESSENCIAL
Quem tem medo da cultura? A pergunta parece estranha, mas poderia ser formulada de outro modo. Poderíamos, num aparente paradoxo, interrogarmo-nos sobre: quem tem medo da economia? Dir-se-á que é anómalo pôr a economia neste conjunto de perguntas – que, na formulação mais clássica, dos contos tradicionais, levar-nos-ia à interrogação da criança: quem tem medo do lobo mau? Vamos, no entanto, procurar ver se nos entendemos. É mesmo de medo da cultura que falamos, como conhecimento, como transformação da natureza, como letras, artes, ideias, como educação e ciência… Se a economia é para aqui chamada é porque, etimologicamente, não podemos esquecer que a «regra da casa», que vem do grego oikos e nomos, só tem sentido se puser as pessoas no centro dos acontecimentos e se entendermos que nem tudo tem preço, mas que tudo tem valor, até porque o que tem mais valor é o que não tem preço. Eis porque a economia humana tem a ver com gente de carne e osso, com a exigência de garantir que ninguém nos seja indiferente. A economia é, pois, para aqui bem chamada para nos dizer que a cultura começa exatamente quando as pessoas têm de cuidar do valor de tudo o que as rodeia, muito para além do preço, que não compra nem a honra nem a dignidade que são matéria-prima da cultura. Afinal, como no caso de Virgínia Woolf em Edward Albee, temos de entender que muita da indiferença ou da ilusão vivida e alimentada, se deve à tentação de pensar que há modelos, receitas, determinações, necessidades ou fatalismos – ou que o mundo pode ser concebido sem diferenças ou sem a força da liberdade das pessoas. Como disse T. S. Eliot num ensaio célebre sobre a definição da cultura: «Tal como “democracia”, a palavra cultura precisa não só de ser definida, mas também ilustrada, cada vez que a empregamos. E é necessário que se saiba o que quero dizer com a palavra “cultura”, para que possamos ser bem claros quanto à diferenciação entre a organização material da Europa e o organismo material dessa mesma Europa». Daí que o poeta falasse da compreensão das diferenças e complementaridades: «precisamos de variedade na unidade: não a unidade da organização, mas a unidade da natureza». Esta a grande questão que importa considerar. A cultura leva-nos a ter de perceber que a identidade e a diferença se completam, a tal ponto que, fechando-se uma cultura sobre si mesma, torna-se depressiva e decadente, recordatória, mas incapaz de avançar, ficando cega à memória e ao entendimento dos outros. Assim, quem tem medo da cultura é quem baixa os braços perante a força avassaladora do imediato, da simplificação e da indiferença. E quem se deixa vencer por esse medo atávico, verifica para mal dos seus pecados que se tudo começa na cultura, segue rapidamente para a economia humana, porque o que verdadeiramente importa é saber se a vida das pessoas é fim ou é meio. À primeira vista a resposta é fácil, mas quando começamos a tentar precisar as fronteiras entre finalidade e instrumento, entre objetivo e técnica, depressa percebemos que o medo da cultura é a tentação de nos deixarmos levar pela vitória do erro e da ilusão.

QUANDO OS QUADROS SE QUEBRAM…
«Os cérebros mal preparados vergam sob a diversidade de conhecimentos – e os quadros da cultura, à força de se alargarem, quebram-se». Marguerite Yourcenar em «Diagnóstico da Europa» (1929) toca assim no tema difícil do empobrecimento da cultura e das humanidades. Não se trata de uma reminiscência, mas da ideia de que a especialização tem como preço a superficialidade de uma pobre «cultura geral». Os exemplos de Pico de la Mirandola e de Leibniz não são repetíveis, mas o seu caso denuncia o domínio perigoso da opinião infundada, vaga e passageira, obrigando ao conhecimento, à compreensão de saberes e ao abrir de horizontes através da criatividade do espírito. Montaigne falava, por isso, da necessidade de uma cabeça bem feita, em vez de uma cabeça bem cheia – e Edgar Morin ao invocar a necessidade do conceito de complexidade vem pôr em realce a compreensão do que nos rodeia por um conhecimento cada vez mais exigente. Hoje, a desvalorização das humanidades mais não representa do que a cedência perante a facilidade e a fragmentação dos saberes. O tempo curto ganha ao tempo longo – e as aparências prevalecem sobre a substância… Mas não tenhamos ilusões: hoje as humanidades com o progresso das ciências tornaram-se muito mais difíceis e exigentes…

ALERTA CONTRA INDIFERENÇA
É preciso um grito de alerta. O bom domínio da língua e das línguas, as ideias claras e distintas, a nitidez e a organização do pensamento (como sinal de respeito e cidadania) como na «paideia» grega, a perceção de que a cultura não se confunde com jogos florais, a ligação necessária entre educação, ciência e cultura, a articulação entre cultura literária e científica, o «esprit de finesse» e o espírito geométrico… – tudo nos leva a olhar para diante e a dizer que a ameaça à cultura vem da facilidade, do autocomprazimento e da mediocridade. E quando as desigualdades se agravam perigosamente isso significa que a liberdade, a igualdade e a diferença se não respeitam e que a dignidade humana é subalternizada, em nome do efeito fácil e da batota. Comparar, relacionar, avaliar, antecipar, ter visão panorâmica dos problemas, entender o contexto e o conjunto, reconhecer a identidade humana, aceitar os limites, saber afrontar o inesperado e o incerto, desenvolver uma ética do género humano respeitadora da singularidade, da sociabilidade e da humanidade – eis o que não pode ser esquecido. «Vivendo se aprende; mas o que se aprende mais é só a fazer outras maiores perguntas», ensinou-nos João Guimarães Rosa. E a verdade é que o que importa (na expressão ainda de T. S. Eliot) é que «não podermos sem os outros produzir obras excelentes que assinalem uma civilização superior». E quem são os outros? Não são só os contemporâneos, mas os que nos antecederam e cuja memória dá sentido à nossa. A crise dos últimos anos ensina-nos que a idolatria do bezerro de ouro do mercado, a cedência face ao erro, à ilusão e à mediocridade ou a tentação de lançar dinheiro sobre os problemas não são solução. Mais humanidade e humanidades exigem menos desigualdades, melhor serviço público, sobriedade no uso dos recursos, sustentabilidade social e humana, diferenciação positiva com salvaguarda dos mais débeis de recursos. Só pode haver uma resposta com resultados positivos se a democracia se fortalecer pela iniciativa dos cidadãos e pela ponderação das responsabilidades, se o poder político legítimo prevalecer sobre os poderes económicos e a especulação, se ao vazio de valores soubermos contrapor uma ética de cidadania, aliada à qualidade na educação, formação, ciência e cultura. A defesa das humanidades tem de corresponder à recusa da facilidade e do novo-riquismo e ao apelo à vontade e à criação. Como poderemos defender a cultura que nos foi legada sem mobilização dos cidadãos e sem democratização do Estado? Quem tem medo da cultura é, afinal, quem tem medo da liberdade e da democracia… 

Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter