UMA PERGUNTA ESSENCIAL
Quem tem medo da cultura? A pergunta parece estranha, mas poderia ser formulada de outro modo. Poderíamos, num aparente paradoxo, interrogarmo-nos sobre: quem tem medo da economia? Dir-se-á que é anómalo pôr a economia neste conjunto de perguntas – que, na formulação mais clássica, dos contos tradicionais, levar-nos-ia à interrogação da criança: quem tem medo do lobo mau? Vamos, no entanto, procurar ver se nos entendemos. É mesmo de medo da cultura que falamos, como conhecimento, como transformação da natureza, como letras, artes, ideias, como educação e ciência… Se a economia é para aqui chamada é porque, etimologicamente, não podemos esquecer que a «regra da casa», que vem do grego oikos e nomos, só tem sentido se puser as pessoas no centro dos acontecimentos e se entendermos que nem tudo tem preço, mas que tudo tem valor, até porque o que tem mais valor é o que não tem preço. Eis porque a economia humana tem a ver com gente de carne e osso, com a exigência de garantir que ninguém nos seja indiferente. A economia é, pois, para aqui bem chamada para nos dizer que a cultura começa exatamente quando as pessoas têm de cuidar do valor de tudo o que as rodeia, muito para além do preço, que não compra nem a honra nem a dignidade que são matéria-prima da cultura. Afinal, como no caso de Virgínia Woolf em Edward Albee, temos de entender que muita da indiferença ou da ilusão vivida e alimentada, se deve à tentação de pensar que há modelos, receitas, determinações, necessidades ou fatalismos – ou que o mundo pode ser concebido sem diferenças ou sem a força da liberdade das pessoas. Como disse T. S. Eliot num ensaio célebre sobre a definição da cultura: «Tal como “democracia”, a palavra cultura precisa não só de ser definida, mas também ilustrada, cada vez que a empregamos. E é necessário que se saiba o que quero dizer com a palavra “cultura”, para que possamos ser bem claros quanto à diferenciação entre a organização material da Europa e o organismo material dessa mesma Europa». Daí que o poeta falasse da compreensão das diferenças e complementaridades: «precisamos de variedade na unidade: não a unidade da organização, mas a unidade da natureza». Esta a grande questão que importa considerar. A cultura leva-nos a ter de perceber que a identidade e a diferença se completam, a tal ponto que, fechando-se uma cultura sobre si mesma, torna-se depressiva e decadente, recordatória, mas incapaz de avançar, ficando cega à memória e ao entendimento dos outros. Assim, quem tem medo da cultura é quem baixa os braços perante a força avassaladora do imediato, da simplificação e da indiferença. E quem se deixa vencer por esse medo atávico, verifica para mal dos seus pecados que se tudo começa na cultura, segue rapidamente para a economia humana, porque o que verdadeiramente importa é saber se a vida das pessoas é fim ou é meio. À primeira vista a resposta é fácil, mas quando começamos a tentar precisar as fronteiras entre finalidade e instrumento, entre objetivo e técnica, depressa percebemos que o medo da cultura é a tentação de nos deixarmos levar pela vitória do erro e da ilusão.
QUANDO OS QUADROS SE QUEBRAM…
QUANDO OS QUADROS SE QUEBRAM…
«Os cérebros mal preparados vergam sob a diversidade de conhecimentos – e os quadros da cultura, à força de se alargarem, quebram-se». Marguerite Yourcenar em «Diagnóstico da Europa» (1929) toca assim no tema difícil do empobrecimento da cultura e das humanidades. Não se trata de uma reminiscência, mas da ideia de que a especialização tem como preço a superficialidade de uma pobre «cultura geral». Os exemplos de Pico de la Mirandola e de Leibniz não são repetíveis, mas o seu caso denuncia o domínio perigoso da opinião infundada, vaga e passageira, obrigando ao conhecimento, à compreensão de saberes e ao abrir de horizontes através da criatividade do espírito. Montaigne falava, por isso, da necessidade de uma cabeça bem feita, em vez de uma cabeça bem cheia – e Edgar Morin ao invocar a necessidade do conceito de complexidade vem pôr em realce a compreensão do que nos rodeia por um conhecimento cada vez mais exigente. Hoje, a desvalorização das humanidades mais não representa do que a cedência perante a facilidade e a fragmentação dos saberes. O tempo curto ganha ao tempo longo – e as aparências prevalecem sobre a substância… Mas não tenhamos ilusões: hoje as humanidades com o progresso das ciências tornaram-se muito mais difíceis e exigentes…
ALERTA CONTRA INDIFERENÇA
É preciso um grito de alerta. O bom domínio da língua e das línguas, as ideias claras e distintas, a nitidez e a organização do pensamento (como sinal de respeito e cidadania) como na «paideia» grega, a perceção de que a cultura não se confunde com jogos florais, a ligação necessária entre educação, ciência e cultura, a articulação entre cultura literária e científica, o «esprit de finesse» e o espírito geométrico… – tudo nos leva a olhar para diante e a dizer que a ameaça à cultura vem da facilidade, do autocomprazimento e da mediocridade. E quando as desigualdades se agravam perigosamente isso significa que a liberdade, a igualdade e a diferença se não respeitam e que a dignidade humana é subalternizada, em nome do efeito fácil e da batota. Comparar, relacionar, avaliar, antecipar, ter visão panorâmica dos problemas, entender o contexto e o conjunto, reconhecer a identidade humana, aceitar os limites, saber afrontar o inesperado e o incerto, desenvolver uma ética do género humano respeitadora da singularidade, da sociabilidade e da humanidade – eis o que não pode ser esquecido. «Vivendo se aprende; mas o que se aprende mais é só a fazer outras maiores perguntas», ensinou-nos João Guimarães Rosa. E a verdade é que o que importa (na expressão ainda de T. S. Eliot) é que «não podermos sem os outros produzir obras excelentes que assinalem uma civilização superior». E quem são os outros? Não são só os contemporâneos, mas os que nos antecederam e cuja memória dá sentido à nossa. A crise dos últimos anos ensina-nos que a idolatria do bezerro de ouro do mercado, a cedência face ao erro, à ilusão e à mediocridade ou a tentação de lançar dinheiro sobre os problemas não são solução. Mais humanidade e humanidades exigem menos desigualdades, melhor serviço público, sobriedade no uso dos recursos, sustentabilidade social e humana, diferenciação positiva com salvaguarda dos mais débeis de recursos. Só pode haver uma resposta com resultados positivos se a democracia se fortalecer pela iniciativa dos cidadãos e pela ponderação das responsabilidades, se o poder político legítimo prevalecer sobre os poderes económicos e a especulação, se ao vazio de valores soubermos contrapor uma ética de cidadania, aliada à qualidade na educação, formação, ciência e cultura. A defesa das humanidades tem de corresponder à recusa da facilidade e do novo-riquismo e ao apelo à vontade e à criação. Como poderemos defender a cultura que nos foi legada sem mobilização dos cidadãos e sem democratização do Estado? Quem tem medo da cultura é, afinal, quem tem medo da liberdade e da democracia…
Guilherme d’Oliveira Martins