O ENTREVISTADOR MÁRIO MESQUITA
Mário Mesquita é o mais brilhante jornalista da sua geração. Afirmou desde muito cedo qualidades de reflexão e de compreensão dos acontecimentos que lhe permitiram ser uma testemunha ativa e privilegiada na transição democrática e no período de institucionalização do regime constitucional no pós-25 de Abril. E sabemos como as democracias se afirmam e consolidam com bons jornalistas e com uma comunicação social atenta, crítica e pluralista. Mário Soares teve um papel maior nesse processo, e estas entrevistas, agora relembradas e dadas à estampa com sucintos, mas utilíssimos, textos de enquadramento, ficarão (ao lado de obras de fôlego, como a de Maria João Avillez) como peças indispensáveis para quem queira estudar e entender como se operou a construção da democracia. E se Mário Soares, na apresentação do livro, afirmou que o título talvez fosse excessivo quanto à sua pessoa, basta ler com atenção as palavras proferidas em momentos diferentes nas entrevistas publicadas, para se perceber que estamos diante de um protagonista maior dos acontecimentos que se sucedem, com influência decisiva no seu curso. De facto, a democracia não é uma construção singular, mas precisa de grandes políticos capazes de compreender factos, de mobilizar vontades e de antecipar circunstâncias, de modo a realizar o objetivo definido por Lincoln de consagração de um regime do povo, pelo povo e para o povo. Desde Péricles a Churchill, os povos precisam de impulsos fortes em momentos decisivos.
COMPREENDER A DEMOCRACIA
Além da importância do conteúdo, o livro é apresentado graficamente com gosto, contando com belíssimas fotografias de Isabel Soares. Depois de um interessante texto sobre a importância do jornalismo na democracia, proferido na Universidade de Coimbra, em janeiro de 1996, a substância propriamente dita começa com a entrevista respeitante à «estratégia dos socialistas em tempo de exílio», realizada em 1972 pelo jovem jornalista do «República», sob a direção de Raul Rego, mas, por efeito da censura, apenas publicada em abril de 1974. É um documento muito relevante, no qual se notam as cautelas de um político que se prepara para a democracia que não deveria tardar. «Quando em jovem me deixei contaminar pelo “vírus político”, a minha principal motivação foi de ordem moral. Num país como Portugal, tudo reveste uma coloração política – e há o bom e o mau campo, sem ambiguidade possível. A escolha é, pois, fácil, quando as pessoas têm a coragem de se imunizar contra as sugestões do interesse pessoal e da comodidade». Com estas palavras, Mário Soares defende a dignidade da vida política e marca a coerência que liga as diversas intervenções. Há temas sensíveis como a memória dos excessos da Primeira República e, sem esquecer os próceres republicanos, afirma «que estão criadas condições para que a chamada questão religiosa seja superada na sociedade portuguesa», aproximando-se da linha de António José de Almeida nesse domínio. Quanto à questão colonial, explica a fórmula usada na campanha da CEUD (1969) «nem abandono nem guerra», enfatizando que «um grupo político responsável e que preze a sua própria dignidade não pode desinteressar-se da sorte dos seus compatriotas que constitui o próprio objeto da sua existência». A segunda entrevista reporta-se à «crise da unidade sindical» e é publicada no «República» em 31 de janeiro de 1975. É um momento crucial da consolidação da democracia, em que a lógica pluralista é defendida com clareza, contra as tentações de «unicidade». «São aqueles que não acreditam no valor revolucionário da liberdade que nos acusam de termos feito uma viragem à direita. Isso é perfeitamente inconsistente».
A DIMENSÃO INSTITUCIONAL
A terceira entrevista, realizada no «DN», em junho de 1977, já na qualidade de Primeiro-Ministro, é cautelosa e institucional, afirmando M. Soares os valores da mediação e do diálogo – como modo de evitar «uma rutura na sociedade portuguesa», que levasse «à vitória de um dos extremos pelo esmagamento violento do outro».
Em 1984, sete anos depois, passados os governos de iniciativa presidencial e da Aliança Democrática, feita a revisão constitucional de 1982, o tema é a «procura do semipresidencialismo nos primeiros anos da Democracia». Mário Soares é de novo Primeiro-Ministro, agora num governo de «bloco central», de coligação com o PSD, na reta final da adesão europeia. Perguntado sobre qual teria sido o seu maior erro, responde que deveria ter feito uma grande aliança de centro-esquerda em 1976. E sobre a eleição presidencial relata uma conversa havida com Francisco Sá Carneiro, em que este não compreende por que razão M. Soares não foi candidato presidencial em 1976. « – Porque me pareceu sempre que era preciso primeiro institucionalizar o regime, fazer decantar as coisas, estabelecer relações perfeitamente transparentes e normais com os militares, o que estava longe de ser o caso em 1976. Só depois é que haveria condições para um civil se candidatar…». Tal apenas viria a acontecer na eleição de 1986, e é premonitória e lapidar a sua definição de semipresidencialismo: «um presidente com a legitimidade que resulta de uma eleição por sufrágio direto, mais ou menos sintonizado com uma maioria legislativa sólida, e com capacidade de intervenção discreta e a experiência necessária para poder ser um moderador e um árbitro, bem como o principal garante da Constituição e do regime democrático». Por outro lado, tornava-se indispensável criar um novo dinamismo entre os agentes económicos. A quinta entrevista foi concedida ao «Diário de Lisboa», em 1990, com Diana Andringa e Dina Soares – «de Primeiro-Ministro questionado a Presidente superconsensual» – e a sexta é de novo ao «DN» sobre os vinte anos do PS, em abril de 1993, dois anos antes da vitória eleitoral dos socialistas. Mário Mesquita recorda os sete votos contra a formalização do Partido, entre os quais se encontrava o seu, confessando, porém, que «um ano depois, a revolução do 25 de abril veio a dar razão a Mário Soares». A história da resistência revela coerência e capacidade de antecipação: MUD Juvenil, PCP, candidatura de Norton de Matos, Resistência Republica e Socialista, participação no Diretório Democrata-Social (de António Sérgio e Azevedo Gomes), as lições da candidatura de Humberto Delgado, o Programa para a Democratização da República, a convergência em «O Tempo e o Modo», a cisão do Diretório e a questão colonial, a separação entre CDE e CEUD (em Lisboa, Porto e Braga, em 1969) ou a afirmação do PS como vencedor das primeiras eleições democráticas… Há muitos motivos nesta obra para relembrar uma história essencial, num tempo em que a memória reforça a liberdade…
Guilherme d’Oliveira Martins