"Nos tempos da "Raiz e Utopia" ou da página "Alternativas"
do Expresso, coordenada pela Helena, um dos autores mais citados era Ivan
Illich. Era um pensador rebelde. As suas obras ainda hoje podem ser lidas,
talvez com redobrado interesse, uma vez que foi dos primeiros a pôr
o dedo na ferida aberta pelo consumismo e por aquilo que hoje designamos
como fundamentalismo de mercado. Disse-nos, com veemência, que o
crescimento material é enganador, sobretudo se visto na óptica
da destruição da natureza e da insaciabilidade por novos
bens e novas riquezas, ainda que esses se adquiram à custa da miséria
e da exclusão. Há uma semana invocávamos o conceito
de justiça de Rawls, hoje falamos do inconformismo de alguém
que acreditava sinceramente em que era possível inverter a tendência
para que as instituições se tornassem factores de limitação
e de bloqueamento da sociedade humana. Illich acreditava na "convivialidade",
conceito que introduziu na reflexão contemporânea, porque
via tudo a partir das pessoas e da necessidade de ir ao seu encontro.
Questionou, por isso, a escola, a saúde, as administrações
e a organização económica de uma industrialização
predadora. "A solução da crise obriga a um volte-face
radical: só mudando a estrutura profunda que regula a relação
do homem e do instrumento poderemos dar-nos instrumentos justos"
– dizia. "O instrumento justo deverá, porém, obedecer
a três exigências – deve ser gerador de eficiência sem
degradar a autonomia pessoal, não deve criar nem escravos nem mestres,
deve, no fundo, alargar o raio de acção das pessoas".
Para Illich, do que precisamos é de instrumentos com que trabalhar,
e não de instrumentos que trabalhem em vez de nós. Afinal,
necessitamos de uma tecnologia que tire o melhor partido da energia e
da imaginação pessoais, não de uma tecnologia que
nos torne servis e programados… Compreende-se bem que Illich, ao
longo da sua vida, tudo tenha procurado fazer para conciliar raízes
e utopia, lutando para que esta não se tornasse escravizadora.
Numa vida muito rica (1926-2002), desde Viena, onde nasceu, a Cuernavaca
(México), onde animou o CIDOC (Centro Intercultural de Documentação),
passando por Florença, Roma, Nova Iorque e Porto Rico, Illich procurou
ser sempre fiel à defesa intransigente da dignidade das pessoas
e da força de uma cultura humana. Tudo para que os "mecanismos
de usura não ameacem o direito das pessoas à sua tradição,
o recurso ao que nos precede, através da língua, do mito
e do ritual". Que valerá a utopia sem fidelidade às
raízes? Há dias, Illich deixou-nos, em Dresden. Não
o tínhamos esquecido!"
Guilherme d`Oliveira
Martins
Presidente do Centro Nacional de Cultura