A PAIXÃO DE VIAJAR
A ideia de viagem é apaixonante sempre, ainda que a concebamos de um modo que se vai modificando consoante as circunstâncias concretas. Ora ao encontro de outros lugares e outros povos, ora na procura de paragens e tempos misteriosos e exóticos, do que se trata é de compreender a humanidade como realidade multifacetada e inesperada. Viaja-se na procura dos outros e na busca de nós próprios – desde o quarto de De Maistre às fantasias de Mandeville, desde as aventuras reais de Fernão Mendes Pinto ou das imaginárias de D. Quixote, aos périplos de Marco Polo. Quando Thomas Morus nos relatou o testemunho do português Rafael Hitlodeu e da ilha que encontrou, onde a sociedade humana procurava aproximar-se da perfeição, fê-lo menos para apresentar um modelo ou uma construção fechada, mas como a proposta de um horizonte de exigência a considerar pela humanidade. O escritor chamou a essa ilha, propositadamente, Utopia, buscando na etimologia grega a noção do que não tinha lugar – do mesmo modo que nos punha de sobreaviso perante a imaginação certamente fértil do marinheiro. E houve quem tenha contraposto a essa proposta de sociedade porventura ideal o texto do grande amigo de Morus, e também próximo do nosso Damião de Goes, Erasmo de Roterdão «O Elogio da Loucura» (publicado em 1511), cinco anos antes da obra do britânico. Afinal, perante a crítica direta à sociedade em que viviam, Morus optou por fazer a descrição de uma organização que estava nos antípodas da que na prática existia. E, ao ler a «Utopia» lembramo-nos de «A República» de Platão, onde o filósofo grego tinha em mente a conceção de uma sociedade que pudesse obedecer ao domínio das ideias. E invocamos ainda «Timeu» e «Critias», onde o mito é lembrado, como lugar mítico de referência e modelo. E se caminhamos para trás até à antiguidade grega, poderemos ainda andar para diante até 1602 para encontrarmos a proposta de Campanella da «Cidade do Sol», nitidamente inspirada pela mesma ideia de «Utopia». Fazendo a crítica relativamente à sociedade humana, plena de contradições e de imperfeições, podemos ainda dar o exemplo de Jonathan Swift com as viagens de Gulliver (1726-1735), nas quais há uma forte e severa ironia relativamente à sociedade britânica do início do século XVIII. Do mesmo passo, a obra do contemporâneo Daniel Defoe põe o viajante Robinson Crusoe (1719) no centro da reflexão sobre a curiosidade e a adaptabilidade humanas… De facto, sempre a ideia de utopia apaixonou a humanidade, sedenta da busca da felicidade – quer no eterno retorno, como na Atlântida de Sólon e de Platão, quer num lugar distante, quer na dimensão futura do tempo.
UM VIAJANTE DO TEMPO
O misterioso «viajante do tempo» de Wells chega por um complexo encadeamento de cálculos matemáticos a uma nave capaz de se movimentar na quarta dimensão, a duração do tempo, até ao ano 802.601, onde à primeira vista parece encontrar-se uma sociedade pacífica e integrada – a dos Elóis, descendentes da humanidade e depositários das suas virtudes. No entanto, depressa se percebe que essa comunidade, complacente e diurna, é dominada pelos Morlocks, que vivem nas entranhas da terra, impõem a servidão e são predadores relativamente a quantos sobrevivem nessa humanidade remanescente. Ora é essa mesma influência de H.G.Wells que encontramos em «A Armadilha Diabólica» de E.P.Jacobs, banda desenhada de culto, da série de Blake e Mortimer. E ficamos sem verdadeiramente saber se o perverso Miloch programou os comandos do célebre Cronoscafo para enviar Philip Mortimer em direção a tempos especialmente perigosos (bem mais próximos de nós do que o tempo dos Elóis e dos Morlocks) ou se se limitou a sabotar o aparelho para fazer desaparecer para sempre o cientista escocês no labirinto do tempo… São as teorias da relatividade de Einstein e a complexa relação espaço / tempo que estão presentes nesta ficção, domínios em que a ciência continua muito interessada… Na pré-história, Mortimer consegue evitar ser engolido por um dinossauro; na Idade Média, em La Roche-Guyon, depara-se com o tempo da Guerra dos Cem Anos e das jacqueries, com os grandes perigos inerentes e na França do futuro encontra um segundo Dr. Fausto, explorador da pirâmide de Keops, inventor do telecefaloscópio e buscador da Atlântida – para não falar da Europa dentro de três mil anos, dominada por asiáticos… A lista de utopias e distopias é inesgotável. A imperfeição encontra a busca da felicidade.
A GRANDE METÁFORA
O filme de Fritz Lang «Metropolis» (1927) está bem presente na nossa memória, apesar (ou por isso mesmo) de situado num tempo demasiado próximo de nós, o ano de 2026. É a grande metáfora do progresso e das suas desigualdades que está sobre a mesa. Por seu turno, o «Fausto» de Murnau interroga a precariedade dos desígnios e desejos humanos. A lista das obras literárias, tantas delas trazidas para o cinema, que põem a tónica na contradição entre o desejo de perfeição e a tirania do absurdo é longa e estimulante: Jack London com «Iron Heel» (Tacão de Ferro, de 1908); «Nós» de Eugueny Zamiatin (1924), que tanto influenciou George Orwell quando este nos pôs de sobreaviso em relação aos totalitarismos – em «Mil Novecentos e Oitenta e Quatro» e em «O Triunfo dos Porcos (Animal Farm); «O Processo» de Franz Kafka» (1925); «O Admirável Mundo Novo» de Aldous Huxley («The Brave New World», de 1931), cujo título é tragicamente irónico, já que a sociedade organizada segundo princípios científicos e laboratoriais se torna um pesadelo desumano; «Eu Robô» de Isaac Asimov (1950), «Farenheit 451» de Ray Bradbury (1953), pondo-nos alerta perante a desertificação da leitura e da literatura; «O Senhor das Moscas» de William Golding (1954); «A Laranja Mecânica» de Anthony Burgess (1962); ou «O Caçador de Andróides» de Philip Dick (1968), passado à tela como «The Blade Runner»; até «Neuromance» de William Gibson (1984), uma alucinação coletiva digital, e «Homem na Escuridão» de Paul Auster (2008), relato de uma trágica fragmentação de uma América em guerra consigo própria… A busca da felicidade, do respeito mútuo, do desenvolvimento, da paz estão bem presentes – num apelo constante para que nos compreendamos melhor.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença