NUM TEMPO DE PROVAÇÕES
Ao analisarmos o pensamento económico do Padre António Vieira, temos, antes de mais, de entender as condicionantes de que partia. Tratava-se de dar resposta, como conselheiro do Rei, a um difícil desafio que decorria da recuperação da independência política de Portugal em 1640, finda a monarquia dual. Ao apoiar o Duque de Bragança, D. João, e atribuindo-lhe uma legitimidade profética, ilustrada pelas antigas trovas do Sapateiro de Trancoso, o Bandarra, Vieira vai tornar claro que «o desejado», que o povo esperava, não é o rei desaparecido nas areias de Alcácer Quibir, no dia funesto de 4 de agosto de 1578, mas um monarca vivo, que fora aclamado com o fim da dominação estrangeira. Assim se entende que o Sermão de Santo António de 14 de setembro de 1642, em vésperas de votação dos impostos da guerra da Restauração esteja imbuído de uma ideia fundamental de partilha de sacrifícios e encargos pelos três estados do reino. Um sistema de impostos mais equitativo reduziria os sacrifícios exigidos ao povo. E importa não esquecer que uma das razões que levou à Restauração foi a tributação excessiva aplicada pelo poder central sob a administração do Conde Duque de Olivares, a braços com os elevados custos da guerra dos trinta anos. Vieira liga, assim, a equidade tributária, a partilha de sacrifícios à salvaguarda da soberania. Era necessário amealhar recursos para impedir a dominação externa. Se é verdade que as exportações de mercadorias e uma política aduaneira protecionista se revelavam indispensáveis para garantir a independência, não poderia esquecer-se que a Europa estava em guerra, o que aumentava os riscos de insucesso de uma política apenas fundada no aumento da circulação mercantil. Havia assimetrias na distribuição de riquezas das diferentes nações, pelo que Portugal teria de adotar medidas excecionais, com respeito das leis divinas, impedindo o estabelecimento de opressão e injustiças para os povos do reino.
EM NOME DA JUSTIÇA
E o orador sagrado invocava o exemplo bíblico: «a costa de que se havia de formar Eva, tirou-a Deus a Adão dormindo e com quanta suavidade se deve tirar ainda o que é para seu proveito. Da criação e fábrica de Eva dependia não menos que a conservação e propagação do género humano (…) Deus tirou a costa de Adão, não acordado, senão dormindo: adormeceu-lhe os sentidos, para lhe escusar o sentimento». A reforma tributária haveria que ser justa, afetando os interesses e privilégios da nobreza e levantando a isenção eclesiástica. Daí a alegoria do «sal da terra», como fator de conservação – eis por que razão a água (o povo), o fogo (o clero) e o ar (a nobreza) se deveriam manter juntos. Essa união e essa complementaridade garantiriam os recursos suficientes para a manutenção do reino – sem pôr em causa a ordem social. O apelo a todos, leva o Padre Vieira a dizer que «vassalos que com tanta liberalidade despendem o que têm e ainda o que não têm por seu Rei não são Povo». O dever de assegurar a partilha dos sacrifícios da restauração e da guerra é de todos. Daí que diga não haver Povo em Lisboa, já que o que se pede ao terceiro Estado deve ser repartido por todos. Serão talvez Príncipes, no sentido em que a todos se solicita o melhor de si. «Deixem todos de ser o que eram para se fazerem o que devem». E recorda a passagem de S. Mateus: «Entrando em Cafarnaum, aproximaram-se de Pedro os cobradores da didracma e disseram-lhe: “O vosso mestre não paga a didracma?” “Claro que paga”, respondeu. Quando chegou a casa, Jesus antecipou-Se dizendo: “Que te parece Simão? De quem recebem os reis da terra impostos e contribuições? Dos seus filhos ou dos estranhos”. E como ele respondesse: “Dos estranhos”, Jesus disse-lhe: “Por consequência, os filhos estão isentos. No entanto, para não os escandalizar, vai ao mar, deita o anzol, apanha o primeiro peixe que nele cair, abre-lhe a boca e encontrarás aí um estáter. Toma-o e dá-lho por Mim e por ti”» (Mt., 17). A obrigação é assim de todos, fora de qualquer interpretação anacrónica, do que se trata é de buscar uma legitimidade política alargada para a causa de D. João IV, rei de Portugal. Mais do que o moderno entendimento de justiça distributiva, encontramos aqui um marcado discurso político de motivação para e de resposta às profundas carências sentidas pelo Reino. E o autor dos «Sermões» bem conhecia o problema, uma vez que tinha sido chamado a contribuir para a reorganização económica do reino, a conciliação com a Holanda em virtude das disputas sobre as conquistas no período da monarquia dual, em especial no caso de Pernambuco, bem como à tentativa de atrair os judeus e os cristãos-novos portugueses para apoio à reconstrução de Portugal. Mais do que o entendimento de um mercantilismo assente na acumulação do ouro, o que está em causa é o que poderemos designar como fixação de riqueza. Haveria que mobilizar os cristãos-novos e os seus recursos, até para os cristãos-velhos se não deixassem iludir pelo poder de Castela. E importaria criar Companhias como as dos holandeses para explorar o comércio, porque por falta deste «se reduziu a opulência e grandeza de Portugal ao miserável estado em que Vossa Majestade o achou (dirigia-se a D. João, em julho de 1643); e a restauração do comércio é mais certo caminho de V. M. o restituir ao antigo». E neste ponto os investimentos caberiam à burguesia comercial e à nobreza, razão pela qual haveria que motivar a todos. A distinção entre cristão-novo e cristão-velho deveria ser abolida e deveriam atrair-se as pessoas e os seus recursos. «Se o dinheiro dos homens da nação está sustentando as armadas dos hereges (…) não é maior serviço de Deus e da Igreja que sirva esse mesmo dinheiro às armas de rei mais católico…?».
UMA NOVA ORDEM
O Padre António Vieira tem consciência plena de que haveria a alterar profundamente a organização do reino e da sua Administração. Combate, por isso, não apenas a opinião nacional retrógrada, mas também os interesses dos poderes dominantes em Portugal, na Europa e no comércio global. Diversos privilégios eram atacados, as próprias receitas do Santo Ofício resultantes do confisco de bens estavam em causa. Havia demasiados interesses postos em causa, de sinal contraditório, enquanto questões de justiça e de eficiência. Os navios portugueses estavam subutilizados, poderiam ter maior carga e ser mais bem aparelhados, devendo navegar no mínimo com 400 toneladas, com 20 peças de artilharia e com mais sentido mercantil. E ainda haveria que reforçar as relações diplomáticas diretas, interrompidas no tempo, diria Rodrigues Lobo, da «Corte na Aldeia». Em suma, havia que atrair os portugueses, homens da nação, de grandíssimos cabedais. O seu retorno ampliaria a população, faria lucrar as alfândegas, facilitaria a redução dos impostos à população em geral e permitiria a Portugal recuperar a influência e os recursos perdidos, bem como reconquistar territórios ocupados durante o período da monarquia dual. Afinal, o regresso dos judeus e cristãos-novos não teria empecilho de natureza divina ou humana, até porque o jesuíta faz questão de se fundamentar no parecer de doutores da Igreja que contrariam nitidamente a lógica redutora e negativa. «Pelas conveniências do comércio, admite Portugal (como se vê em Lisboa, e em todas as cidades e portos marítimos) muitos hereges de Holanda, França e Inglaterra que muito é logo que se admitam e conservemos homens de nação, sendo neles muito maiores as razões do nosso interesse? Tudo o que ganham os mercadores estrangeiros enriquece as suas províncias e pátrias, e o que negoceiam os portugueses fica na nossa». A fixação de riqueza, a criação de excedentes e o equilíbrio que permitisse o reforço da posição portuguesa são assim peças-chave do pensamento de Vieira.
Guilheme d’Oliveira Martins