MUITO MAIS QUE UMA VIAGEM
Trata-se da participação da escritora numa reunião que pretendia ser mais importante do que foi. Agustina é sempre surpreendente. E assim construiu um livro que é a um tempo o relato de uma viagem e o acompanhamento, quase romanesco, de uma embaixada encarregada de tentar convencer um Imperador romano a fim de assegurar os direitos do povo judeu de Alexandria. Tudo vem a propósito de um convite no âmbito do Congresso para a Liberdade da Cultura, criado em 1950 em Berlim, tendo como presidentes de honra Benedetto Croce, John Dewey, Karl Jaspers, Jacques Maritain e Bertrand Russell. Estava em causa, no ano em que Agustina foi a primeira portuguesa a participar (1959), o empenhamento do poeta Pierre Emmanuel em criar em Espanha uma Comissão que, dentro do espírito do Congresso, contribuísse para a democratização, o que obrigaria à ligação com intelectuais portugueses, para que a ação tivesse relevância ibérica. Daí o encontro organizado no castelo (com fantasmas e maldições) de Lourmarin, em Bouches-du-Rhône, de 8 a 12 de julho. O nome de Agustina fora sugerido por François Bondy, diretor da revista «Preuves», que tivera boas indicações a partir do tradutor alemão de «Os Incuráveis». Só mais tarde, graças a António Alçada Baptista e a João Bénard da Costa, a comissão portuguesa constituir-se-ia. Entretanto, a comissão espanhola seria envolvida em diversas vicissitudes políticas bem típicas da guerra fria e da oposição ao franquismo… E Agustina percebeu que algo não funcionava. Uma certa distância de Camilo José Cela foi sintoma que levaria ao desinteresse deste. Pedro Laín Entralgo presidia à delegação espanhola, José Maria Castellet era secretário e Julián Marías, José Luís Aranguren e Luís Cano participavam. Dionísio Ridruejo, que não esteve em Lourmarin, estaria no epicentro da ação política, e mais tarde Tierno Galván e José Luís Sampedro incorporar-se-iam…
COMPANHEIROS DE EXCEÇÃO
Entre 30 de junho e 29 de julho desse ano de 59, o casal seguiu um percurso que saiu do Porto, no célebre Volkswagen comprado por Alberto Luís, passando por Ávila, Madrid, Toledo, Aranjuez, Barcelona, Narbonne, Aix-en-Provence, Lourmarin, Les Baux, Antibes, Monte-Carlo, Milão, Pádua, Veneza, Arezzo, Roma, Florença, Nice, Carcassone, Vitória e regresso à invicta… Em cada um destes pontos encontramos belos motivos para uma leitura apaixonante. E Calígula, o estranho imperador, que «não era outra coisa senão um homem vulgar», desses «que matam com naturalidade, no palco onde vocifera uma vezes o bom senso, outras vezes o sentimentalismo da divinização», simboliza no livro o pano de fundo ou a figuração da Europa e do Ocidente como destino. E «não se pode sonhar mais tremendo adversário e motivo mais urgente para uma Embaixada». É Fílon de Alexandria que acompanha os passos de Agustina – «admirável Fílon, feito companheiro de viagem e que deu sentido a muita obscura tristeza minha, a muitas agonias encobertas durante o tempo da verificação e de encontro com o Ocidente». Mas numa tão difícil embaixada vai haver outros companheiros decisivos, que ajudam ao espírito crítico: Montaigne, Stendhal, Dante, Savonarola, S. Francisco de Assis, artistas, reis, guerreiros. As paisagens, os monumentos, as obras de arte, as pessoas, as cidades, os costumes, nada passa indiferente nesta reflexão crítica, de uma deambulação espantosa (como diria Alberto Vaz da Silva) onde o essencial se mistura com a vida.
QUE EUROPA PENSAR?
A referência de Agustina a Fílon e a Calígula é intencional. Ao sair de uma das sessões de Lourmarin diz: «A Europa revelava-se-nos duma maneira que se nos afigurava irreal, impalpável, algo abjeta na sua melancolia e na sua obstinada confissão; no grande sol de julho crepitava a terra, e as cigarras continuavam com o seu canto estrídulo e infatigável». E aqui está a chave da escolha do tema da Embaixada a Calígula. Quando a audiência foi concedida, após longa espera, percebeu-se que o Imperador apenas desejava ser adorado como deus. Ridicularizado, Fílon tem de retirar-se sem ser ouvido. Também Agustina percebeu que havia pouco interesse em ouvir «o excessivo sentimento do quotidiano com que são vistos os problemas do espírito», confessando que «o sentido da mediocridade rege tudo isto». De algum modo, Lourmarin não atingiu os seus objetivos e o que se lhe seguiu confirmou plenamente a intuição de Agustina. «Termina o Encontro (…) numa atmosfera desenfreada de exaustão e de tédio». Ironicamente, relativamente à Embaixada a Calígula, tudo acabou do modo contrário ao esperável quanto ao resultado prático: «É então que Calígula é assassinado à saída de um teatro. O Senado pretende proclamar a República, mas Agripa, que descobre o corpo de Caio e espalha o boato de que ele ainda respira, consegue demorar os acontecimentos; não contraria abertamente os cônsules, mas influencia no sentido de ser pedida a adesão de Cláudio aos princípios republicanos, o que é, de certo modo, colocar o Senado numa situação difícil. Quando Cláudio se resolve a aceitar o título de imperador, está ganha a causa dos judeus». E eis como a vida política de Fílon tem um final épico, quando poderia ter sido um rotundo fracasso. Há algo de semelhante em Lourmarin, Pierre Emmanuel é o primeiro a reconhecê-lo a Agustina: «Eu tive a alegria de a saudar entre nós e lamento que a aridez de alguns assuntos não lhe tenha permitido abordá-los com a elevação que desejaria e da qual a sua intervenção nos deu ideia. Compreendi desde as primeiras palavras que pronunciou no decurso do primeiro dia, quais as perspetivas que desejaria abrir, e que eram as boas». E pode dizer-se que «Embaixada a Calígula» é hoje um apelo para a compreensão das fragilidades europeias, não resolúveis com jogos formais. «Não temos de facto liberdade, a liberdade criamo-la» diz Julian Marias.
VIVER NUM TEMPO LIMPO…
«Não me agrada regressar nem me agradou partir». Agustina surpreende-nos da primeira à última linha. Sentimos, com ela, a força das paisagens ou dos pormenores dos hábitos gastronómicos, mas sobretudo a compreensão das considerações de Dante ou de Stendhal, ou a pintura de Leonardo da Vinci e a galeria dos Ofícios em Florença. E quando passa a fronteira no regresso: «É de noite quando Portugal, com o vento dos seus planaltos e maninhos, nos oferece a visão duma pátria onde não circula vivalma sob o céu crivado de estrelas». E fica a pergunta fundamental sobre o balanço desta longa peregrinação: «Era ver os tesouros, admirar as cidades, conhecer as civilizações, o que nós desejávamos? Não, não era. Eu penso que não. Queria, em vez de vaguear pelas capitais embandeiradas, viver num tempo limpo e sem exasperação, em que eu pudesse ler os versos de Neruda sem me ocultar dos que têm o coração alvo demais: ou que eu pudesse entrar numa igreja sem que me chamem reacionária»…
Guilherme d’Oliveira Martins