OBRA MULTIFACETADA
Acompanhei Umberto Eco, quando veio a Portugal a convite de Mário Soares, no ciclo «Balanço do Século». E recordo que foi com Antonio Tabucchi, saudoso amigo e grande nome da cultura europeia, que nos conhecemos. Eco era uma personalidade fascinante. Sendo medievalista e semiólogo foi o que alguns designaram como «humanista total». Quando lemos a sua obra multifacetada apercebemo-nos da rara qualidade de se interessar por tudo o que fosse humano – mercê da consciência aguda que tinha dos limites e dos territórios. «O Nome da Rosa» é um dos grandes romances europeus e constitui uma verdadeira parábola sobre a modernidade em diálogo com um tempo ainda muito desconhecido que é a Idade Média. O escritor deixara-se fascinar pelo longo período medieval – compreendendo a sua grande extensão, a diversidade de elementos que conteve e o facto de ser um período de transição. E o que é a História senão sempre uma sucessão de elementos transitórios? Acontece, porém, que no caso da Idade Média europeia podemos encontrar a herança clássica, a emergência de novos povos e influências, o diálogo mediterrânico e o fundo judaico-cristão. Tratou-se de um tempo longo de grande curiosidade e de diálogo entre culturas e civilizações… Um jornal italiano falou do homem que tudo sabia. Até ao fim da vida, foi alguém com uma inesgotável capacidade de atenção e criatividade. «Apocalípticos e Integrados», «Obra Aberta» e «O Pêndulo de Foucault» são referências importantes, em que somos chamados a ir sempre mais além no conhecimento e na compreensão da incerteza e da complexidade. No fundo, a grande lição de Umberto Eco é a da necessidade de assumirmos um novo humanismo, capaz de ligar letras e ciências, educação e artes – a partir da ambição de um saber amplo, aberto e integrado.
O PERIGO DE ACREDITAR EM TUDO
Muitos nos lembramos da sua memorável conferência na Fundação Calouste Gulbenkian, em que partiu da enigmática afirmação de Chesterton: «desde que os homens deixaram de acreditar em Deus, isso não significa que já não acreditem em nada; acreditam em tudo…». Perigosa situação! Segundo uma preocupação que o acompanhou durante a sua prolífera criação intelectual, referiu que a civilização grega, fascinada pelo tema do infinito, associou os conceitos de identidade, de não contradição à ideia de metamorfose contínua simbolizada por Hermes – deus volátil, ambíguo, pai de todas as artes, mas igualmente protetor dos ladrões e, simultaneamente jovem e velho. E, através dessa perspetiva, estamos diante de um paradoxo com ambição ordenadora – o conceito de «eukyklios paideia», entendido como educação integral que aspira ao universalismo do saber. Ora, quando no século II da nossa era essa ideia se impôs, ela contrastou com um Império Romano, que nesse momento, era um caldeirão de povos, de línguas, de crenças, de ideia e de diversas divindades… O hermetismo do século II, para U. Eco, pôs em causa o princípio do modelo racional grego, da exclusão do terceiro termo: «muitas coisas podem ser verdadeiras num mesmo momento, ainda que se contradigam entre si». Aliás, o chamado paradoxo de Teseu sempre interessou a Umberto Eco, até ao fim dos seus dias. A parábola é conhecida: a nave com que Teseu e os seus companheiros regressaram a Atenas vindos de Creta, tinha trinta remos e foi preservada, uma vez que era periodicamente restaurada, através da remoção das peças velhas que apodreciam, substituindo-as por outras novas. Sobre o tema da identidade, diversos filósofos ocuparam-se a discutir qual o verdadeiro navio de Teseu: se a embarcação renovada, se os destroços guardados num armazém ou até se não seria um terceiro navio que tinha usado peças substituídas. Hobbes exprimiu dúvidas sobre o tema e que até Leibniz deu uma solução.
HUMANISMO PLENO
O Renascimento, o humanismo de Pico della Mirandola fazem renascer o saber hermético, abrindo caminho à ciência newtoniana e a tudo o que se lhe vai seguir, sugerindo a ideia de que «a ordem do universo descrita pelo racionalismo grego poderia ser subvertida e que era possível descobrir, no universo, novas relações que permitiriam ao homem agir sobre a natureza e alterar o seu curso». E estamos perante uma tensão evidente entre a Patrística cristã, que procurava conciliar o messianismo judaico e o racionalismo grego através da orientação providencial da História, por um lado, e o gnosticismo, que propunha uma religião de senhores e não de escravos, capaz de pôr em causa, através do conhecimento, inclusive do mal, uma suposta conspiração divina. E o pensador põe-nos de sobreaviso relativamente a duas síndromes perigosas que assaltam as sociedades contemporâneas – do oculto e da conjura. A ilusão perigosa de que alguém possui a chave de um segredo e que tal facto pode legitimar o poder, qualquer que ele seja, financeiro ou político, conduz à perversão. Por outro lado, a ideia de gnose, segundo a qual o homem é vítima de uma conspiração cósmica, transfere-se para o que Karl Popper designa como «teoria social da conspiração» – enquanto crença, designadamente numa divindade, cujos caprichos e vontades tudo regem. No fundo, com a «perda de Deus», alguém ocupa o lugar do sagrado, manipulando e dominando, através de «sinistros grupos de pressão», uma sociedade que assim fica privada de liberdade e de responsabilidade. Deste modo, a chamada de atenção de Umberto Eco não incide numa Razão triunfante ou numa síntese definitiva entre o finito e o infinito – que apenas Deus pode realizar. Querer possui-la é «tornarmo-nos no Diabo, que é a caricatura de Deus». Afinal, «Diabo» significa o que divide, por contraponto a «símbolo», que é o que une.
MEMORÁVEL LEMBRANÇA
Na memorável conferência de Lisboa, Umberto Eco não se eximiu de lançar alertas, sobre a humanidade e suas responsabilidades: «Ao homem resta-lhe o Bom Senso, a Dúvida, a Hipótese, Consenso Provisório. Talvez o princípio da identidade não seja uma lei do universo e que haja galáxias desconhecidas, em que A não é igual a A. Mas se temos de falar e de nos entender-nos, é necessário ter como ponto de partida alguns acordos preliminares, válidos até prova em contrário. A – dentro de certos limites – é igual a A. Isto é, seja a vossa linguagem sim-não, sim-não. O resto provém do Demónio» (cf. «Balanço do Século», INCM, 1990, pp. 105-117). E a lição é inesquecível… «Aquele que não lê, aos 70 anos terá vivido uma só vida. Quem lê terá vivido 5000 anos. A leitura é a imortalidade olhada para o tempo que nos precedeu…». Para Umberto Eco seria impossível pensar o futuro se não nos lembrarmos do passado. E um dos problemas da civilização da internet é a perda do passado – quando não a primazia do imediato e do impensado.
Guilherme d’Oliveira Martins
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