ESPÍRITO DE EQUIPA
Nunca esquecerei a genuína admiração, eu direi mesmo, gratidão, que encontrei no Hospital Central de Maputo em resultado da cooperação realizada na capital moçambicana com a Fundação Calouste Gulbenkian, graças ao empenhamento pessoal de Manuel Sobrinho Simões, envolvendo o IPATIMUP (Instituto de Patolologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto). Trata-se da demonstração da importância da entreajuda, do diálogo, do intercâmbio e do espírito de equipa quando falamos do mundo da ciência e do conhecimento. E quando falamos com o Professor Sobrinho Simões notamos nos seus olhos o brilho especial do entusiasmo na procura e na descoberta, no encontro e na aventura criativa. Por isso mesmo falei de gratidão por parte de toda a equipa daquele «hospital de campanha» de Moçambique, a precisar como todos os projetos verdadeiramente humanos de um esforço constante, generoso, rigoroso, persistente e sem descanso das diferentes valências numa instituição que contribui com dificuldades e dramas para que a ciência possa ser posta ao serviço da vida e de todos. Que é o humanismo senão uma confluência fecunda de fatores e vontades? Mesmo quando o cientista nos dá informação sobre os progressos extraordinários alcançados, põe-nos de sobreaviso perante os novos desafios. Afinal, se estamos a controlar melhor determinadas doenças, há bem pouco consideradas invencíveis, não podendo esquecer que, ao aumentar a esperança média de vida, vemo-nos confrontados com a necessidade de garantir a qualidade de vida para as pessoas que sobrevivem e que nos países mais desenvolvidos vão atingir em breve os 100 ou 120 anos de esperança de vida. Há pouco mais de um século a falta de antibióticos, a mortalidade infantil, a ausência de higiene ou a falta de conhecimentos científicos deixava nos 40 anos a esperança média de vida nos países mais desenvolvidos. Hoje ultrapassámos os 80 anos de idade – mas a grande questão é saber como lidar com o envelhecimento e com a falta de sustentabilidade dos sistemas de segurança social. Fala-se de eutanásia, porque vivemos uma sociedade envelhecida, sem respostas para as novas circunstâncias decorrentes dos avanços científicos. O caso do Hospital Central do Maputo é muito diferente da situação dos países europeus, mas essa extraordinária cooperação está a contribuir não só para dar passos positivos naquele país irmão, mas também por estarmos a progredir globalmente em contacto com situações de emergência e de dificuldade extrema.
A ADMIRAÇÃO PELA INTELIGÊNCIA
Numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, o homem de ciência põe os pontos no ii: «Uma pessoa inteligente é uma pessoa com quem aprendo quando estou a falar com ela. Tenho pouco tempo. Se tiver que identificar o meu grande problema, hoje, é o tempo. (…) Aqui, a inteligência não é num registo de avaliação de quociente de inteligência, é num registo da pessoa que mostra ao outro que há outras realidades, outras formas de ver o mundo, outras formas de se comportar perante o mundo. Para mim, isso é aprendizagem. Tenho uma curiosidade brutal. Pela televisão, pela literatura… Se soubesse mexer no computador, teria uma curiosidade brutal pela informação. (…) O problema maior da nossa cultura científica é a explosão dos conhecimentos. Realmente o genoma e os seus sucedâneos rebentaram com isto tudo… A minha aspiração máxima é aprender aos bocadinhos». De facto, é a aprendizagem que constitui a chave do desenvolvimento. Impõe-se transformar a informação em conhecimento, e garantir que esse conhecimento se traduza em sabedoria. De novo vem à baila a afirmação de T. S. Eliot, já várias vezes aqui lembrada. E é assim que encontramos a chave de uma cultura humanista – que articula necessariamente a educação, a ciência e a cultura como criação. Não esquecemos os extraordinários avanços das neurociências, que ligam incindivelmente o processo criativo do cientista e do poeta, do músico e do artesão, do matemático ou do jurista, do pintor ou do engenheiro, do escultor ou do arquiteto…
HUMANISMO VIVO
Rita Levi Montalcini demonstrou a importância crucial dessa visão humanista, através da sua vida longa, feita desde a resistência num campo de concentração até às descobertas fantásticas sobre as sinapses cerebrais. No fundo, trata-se de compreender que temos sempre de partir da imperfeição (Eduardo Lourenço usa a expressão fantástica de “maravilhosa imperfeição”) para a perfectibilidade, que pressupõe o exemplo, o cuidado e a atenção. E, num momento de imediatismos, temos de valorizar o tempo e a reflexão – chaves essenciais no mundo da ciência, mas também na vida social e política. Ora, Manuel Sobrinho Simões é um excelente exemplo para os dias de hoje do homem de ciência que nos obriga a todos a pensar e a assumir a liberdade e a responsabilidade. Ainda na referida entrevista, afirma: «Os filhos, os discípulos, são muito mais importantes que a obra. É um legado. Vivi toda a minha vida para criar condições de desenvolvimento das pessoas que, ou nasceram comigo, ou vivem comigo, ou trabalham comigo. Não sei porquê. O sucesso de um miúdo meu, seja filho, seja discípulo, seja colaborador, deixa-me muito realizado». Eis a valorização do essencial, as relações pessoais, o progresso como uma evolução em que vamos, de geração em geração, transmitindo conhecimento e sabedoria. E neste ponto chegamos à reflexão de Manuel Sobrinho Simões sobre a preocupante falta de instituições com que nos deparamos, um pouco por toda a parte. A demagogia, o populismo e o chauvinismo são o resultado desse vazio de instituições e dessa ausência humanismo – pelo culto de valores abstratos, mas como enraizamento social da responsabilidade e da partilha. E fala com entusiasmo do IPATIMUP: «A instituição tem um aspeto muito interessante que é estar num segmento de partilha. As pessoas aqui têm amor à camisola e gostam disto. Mas não é pelo aspeto simbólico. É porque o pertencer a isto é uma chancela de que a pessoa é capaz e está a fazer coisas». Falar com Manuel Sobrinho Simões é um prazer inaudito. Sente-se a proximidade humana e o conhecimento em estado puro, generoso e atento. O patologista torna-se antropólogo, o médico assume-se como alguém que fala da vida e das pessoas de carne osso, em vez de se reportar a teorias ou abstrações. Um dia falávamos de Alcácer do Sal, da forte incidência das sezões ou da malária para quem se encarregava da colheita do arroz… Falei-lhe da forte presença de africanos, mais resistentes à doença – e logo ali o mestre me falou de tudo aquilo que eu sabia, e do muito mais que ele conhecia desse tema e que devia acrescentar-se. O que encontramos tem a ver com o conhecimento, a curiosidade, a aplicação prática do que se sabe… Estamos no cerne do conhecimento e da vida, numa palavra, na essência da cultura. A ciência hoje precisa de todos, mais do que nunca – mas especialmente de quantos têm os olhos abertos para todos os sinais que podem tornar a vida melhor e a dignidade humana mais respeitada.