PORTUGUÊS DE GEMA…
A última vez que tive notícias dele foi através do meu Amigo Rogério Martins, que o tinha encontrado em Szohod, capital da Bordúria, um país que poucos conhecem, mas que por vezes regressa à ordem do dia. Estava bem e recomendava-se demais. As vicissitudes da vida trouxeram-lhe alguns dissabores, mas no essencial foi-se arranjando… A primeira vez que apareceu em Portugal, sendo ele um português de gema, e alfacinha, foi confundido com um espanhol. Foi no tempo em que Adolfo Simões Müller, em 1937, o trouxe para a revista «O Papagaio», ao lado de Tintin, numa altura em que ele vivia em Khemed, país onde nunca cheguei a encontrá-lo fisicamente. Como pessoa foi sempre cativante, de uma simpatia generosa, de uma imaginação pródiga, mas sempre cuidando do seu próprio interesse… Nunca revelou a sua idade, porque cultivou a indefinição como jogo de seduzir. Hoje, não sei que idade terá, mas dizem-me ainda estar vivo, algures, protegido, mas atento. Se consultarmos uma enciclopédia corrente ou mesmo a «wikipedia», o seu nome está devidamente biografado, sempre com o mistério da idade por revelar, não se sabendo exatamente onde pára. Um dia, disse-me que essa estratégia era intencional, pois o segredo é a alma do negócio. A sua primeira aparição é de 1932, como personagem de «Os Charutos do Faraó», um clássico da literatura de culto, num episódio em que Tintin é atirado ao Mar Vermelho, por engano, num sarcófago egípcio. Tendo sido salvo «in extremis», o jornalista encontrou-o na embarcação que milagrosamente o recolheu. Oliveira da Figueira põe-se-lhe então à inteira disposição: «se puder ajudá-lo, posso fornecer-lhe a preços competitivos qualquer artigo de que necessite». Começou então por um conjunto flamante de gravatas, às riscas, às bolas ou com figuras exóticas. Seguiu-se um lote de magníficos sabres, com lâminas de Toledo, mil outras bijuterias, além dos brindes: um despertador, escova de dentes etc… Tintin saiu literalmente ajoujado, com um balde, um regador, uma gaiola com papagaio, uns esquis, tacos de golfe, uma casota e uma coleira de cão, além do inevitável despertador – confessando: «Ainda bem que não me deixei levar pela conversa dele. A tipos como este acabamos sempre por comprar uma série de coisas inúteis». O que seria se se deixasse levar… Já na costa árabe, Oliveira da Figueira demonstrará a sua extraordinária arte de convencer. Chamam-lhe «o-branco-que-vende-tudo»… E ele reconhece-se orgulhoso: «Então que tal? Chama-se a isto eficiência! E o melhor é que os meus clientes voltarão». De facto, voltam, mas aquele que aparece é para protestar (sem razão plena, é certo), porque parece ter ingerido um naco de sabão, que lhe produz o óbvio mal-estar originado pelas bolas de sabão que o atormentam. Mas considera-se ignobilmente envenenado: «Antes da Lua Nova, o meu Senhor, o Xeque Patrash Pacha, ter-te-á castigado»…
NO PAÍS DO OURO NEGRO…
Figueira foi, mais tarde, encontrado no «País do Ouro Negro», em outra obra clássica, iniciada em 1939, logo interrompida pela guerra e recomeçada em 1948. Aí, Oliveira ajuda Tintin a encontrar os segredos do temível Dr. Müller, descobrindo um subterfúgio. Mascarado de sobrinho do comerciante, sob o nome de Álvaro, com um aspeto bizarro, levemente atrasado, quase invisual e vítima de uma estória de contornos mirabolantes que o português vai contando sem parar para distrair quantos tinham por missão impedir o acesso aos segredos do vilão. É extraordinária a capacidade fabulatória de Oliveira da Figueira. Inventa que o sobrinho é filho de um criador de caracóis, vítima de uma trama terrível que envolve uma mulher rica que morre de desgosto aos noventa e sete anos e a influência de duas imortais palavras, ditas em português, «Oh! Oh!», cujo sentido, alcance e influência nunca chegamos a conhecer… Depois, em «Carvão no Porão» («Coke en Stock», publicado no «Cavaleiro Andante», em 1959 e 1960, sob o título «Mercadores de Ébano»), Tintin e o seu amigo, Capitão Haddock, pedem apoio e hospitalidade em Wadesdah. Lembro-me, aos sábados de manhã, da expectativa que tínhamos antes de ler a continuação das peripécias. Oliveira da Figueira recebe surpreendido e assustado a visita noturna, com a cidade em estado de sítio, cheia de cartazes a pedir a captura de Tintin. «Que faz aqui, desgraçado? Não sabe que tem a cabeça a prémio?». O português conta o que se passa. Há agitação e um conflito entre a Arabair e o Emir… Tintin diz que precisa absolutamente de ajudar o Emir e Oliveira da Figueira informa que ele teve de fugir para casa do nosso conhecido Patrash Pacha. Tintin e Haddock treinam desesperadamente o equilíbrio das bilhas à cabeça, para que possam não dar nas vistas, mascarados de mulheres árabes, cobertas com burkas. O resultado do treino é desastroso, pois os estragos são enormes e os cacos enchem o armazém do comerciante, que se vê na obrigação de dizer às clientes que as bilhas estão esgotadas. No momento da verdade, tudo parece salvo, mas eis que uma mulher árabe descobre a barba hirsuta do capitão e foge escandalizada. O desastre anuncia-se, mas no final tudo se arranja graças de novo ao apoio providencial de Oliveira da Figueira.
ÚLTIMAS NOTÍCIAS
Quando Rogério Martins me deu notícias sobre o paradeiro do fura-vidas, há cerca vinte anos, reconheci que foi quem porventura melhor conheceu Oliveira da Figueira (leia-se «O Que Fica do que Passa», Asa, 1993). Lembro que, indo de Klow, a mítica capital da Sildávia (que também conheço), até Szohod, ouviu uma voz conhecida: «Porque lá disso de mercado sei eu, e ria, satisfeito com a boa disposição de sempre. O velho Oliveira da Figueira! Há anos que o perdera de vista. Explicou-me o esquema milagre. O governo borduro decide quem deve ganhar o leilão de uma firma a privatizar; o qual apesar de amigo, não tem dinheiro que chegue, como é evidente. O que então se faz é criar-lhe uma entidade financeira que, com discreto apoio do Estado, emite no mercado internacional obrigações a bom juro. E os bancos nacionalizados, usando sociedades-biombo, compram-nas todas. Assim, o dinheiro aparece, a transação é possível, a privatização faz-se. “Mas, Oliveira, isso cheira-me a pescadinha de rabo na boca. O novo proprietário fica endividado ao Estado”. – Não, caro amigo, porque entretanto os bancos vão sendo privatizados também, usando este processo cruzado. No fim, toda a gente é devedora e credora de toda a gente, mas o Estado desapareceu no meio das firmas intermédias» (…) E, olhando-me com aquela garotice tão enternecedoramente portuguesa, que os anos pelo oriente e a crosta austríaca não lhe tinham retirado: “Como vê, é tudo de facto muito simples! E tudo tem corrido sobre patins”. Em sottovoce: “Pessoalmente não me tenho dado nada mal”». Será ele símbolo nosso? Certamente, na sua presença em toda a parte, no pragmatismo, mas ficam as lições do que deve ser feito, dos pés assentes na terra, da exigência de semear e colher. Quanto à descrição final, estamos entendidos sobre os resultados… Oliveira da Figueira não esquece, como símbolo do viajante incansável, que Fernão Mendes Pinto e Diogo do Couto (do «Soldado Prático») descrevem.
Guilherme d’Oliveira Martins