A ATUALIDADE DA OBRA DE EÇA
É recorrente o debate sobre a atualidade da obra de Eça de Queiroz. No panorama da literatura portuguesa estamos perante um caso singular de longevidade, bem como de popularidade, ainda que se verifique uma presença maior de algumas obras como «Os Maias», «A Cidade e as Serras», «O Mandarim», ou «A Ilustre Casa de Ramires» e a «Correspondência de Fradique Mendes»… Mais do que permanência de situações, do que se trata é de uma capacidade assinalável por parte do autor, que lhe permite compreender o género humano. Apesar das profundas transformações que sofreu, a sociedade portuguesa, no último século, apresenta óbvias continuidades, que o sentido irónico de Eça fixa com especial talento, a ponto de sensibilizar e motivar os leitores de hoje para os elementos que se mantém – desde o centralismo e da burocratização, até ao formalismo e à pequenez de ambientes e procedimentos. Está, aliás, dito e demonstrado que «Os Maias» e o «Portugal Contemporâneo» de Oliveira Martins constituem dois documentos complementares fundamentais para se compreender a sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX. E não devemos esquecer que Miguel de Unamuno considerou ter a geração de Eça e Antero sido responsável em grande parte pelo que considerou ser o século de ouro da cultura portuguesa. Relativamente à Geração de 1870 temos de lembrar um percurso trilhado pela sociedade portuguesa, no qual devemos referir cinco momentos cruciais: (a) a polémica sobre o Bom Senso e Bom Gosto de 1865 – contra a escola do elogio mútuo, de que foi símbolo António Feliciano de Castilho; (b) a ação em Lisboa do grupo, que se singularizara em Coimbra, no sentido republicano socializante; (c) a organização das Conferência Democráticas do Casino Lisbonense, cujos primeiros oradores foram: Antero de Quental e Eça de Queiroz; (d) a proibição da realização da conferência de Salomão Saragga; (e) a reação negativa da opinião pública informada, a começar por Alexandre Herculano, contra a arbitrária proibição, que vem contra a tendência de liberdade e de abertura da Monarquia liberal. Voltando, de facto, à ideia do século de ouro, temos de dizer que foram as liberdades públicas em Portugal responsável pela extraordinária sementeira de ideias que foi possível realizar.
ADMIRAÇÃO POR ALEXANDRE HERCULANO
Saliente-se ainda que o apoio de Alexandre Herculano contra o fecho das Conferências se deve ligar a uma relação de profunda admiração do grupo de jovens capitaneado por Antero pelo autor da «História de Portugal». O diálogo estabelecido com o velho mestre traduziu-se, no entanto, na demarcação de Herculano relativamente às ideias igualitárias e ao primado do social defendido. Para ele a liberdade individual deveria estar em primeiro lugar. Neste ponto, um democrata para Herculano era um defensor da lógica socializante, em que ele não acreditava – assumindo a fórmula: sou liberal, mas não democrata. Isso, no entanto, em nada impediu o velho mestre de subscrever o protesto contra a limitação da liberdade de reunião, de expressão e de consciência, uma vez que na decisão de Ávila e Bolama estava a elementar violação de um direito individual, insuscetível de deixar de ser cumprido. Voltando à Geração que ficou conhecida como de 1870, devemos dizer que o «Dicionário de Eça de Queiroz» nos dá o panorama geral da época e dos seus elementos mais significativos. Podemos, assim, beneficiar de um manancial de informação, com uma assinalável regularidade no tocante à qualidade e ao rigor historiográfico que, centrado na figura do maior romancista do seu tempo, nos permite um conhecimento muito mais vasto da época e dos contemporâneos. Se nos lembrarmos da caricatura de João Abel Manta, que apresenta Eça de Queiroz com um conjunto de fantoches representando as personagens fundamentais da sua obra romanesca, facilmente percebemos a grande riqueza das figuras, que representam uma comédia humana de grande riqueza e diversidade: nas mãos do romancista estão Amélia e o Padre Amaro e pendurados estão: Teodoro, o amanuense de «O Mandarim»; Jacinto de «A Cidade e as Serras» (lembrando ainda Zé Fernandes); o Conde de Abranhos; Dâmaso Salcede; João da Ega; Maria Eduarda; Carlos da Maia com seu avô Afonso (símbolo indelével do Portugal antigo); Luísa e o Primo Basílio (recordando Jorge); a perversa Juliana; o impagável e oco Conselheiro Acácio; Gonçalo Mendes Ramires (e os seus mistérios ligados ao último Eça e à vocação de Portugal no tempo do infamante Ultimatum), a tia Patrocínio de «A Relíquia» e o inefável Teodorico Raposo (sem fazer esquecer o dr. Topsius)…
OBRA REVELADA NAS EDIÇÕES CRÍTICAS
Só esta larga procissão de figuras dá bem a ideia da riqueza de uma obra que, durante muito tempo, foi amada e serviu de mote e glosa para muitas considerações sobre o Portugal e os portugueses. Sendo certo que em vida o escritor publicou apenas uma parte da sua rica obra romanesca, a verdade é que hoje com a edição crítica, podemos conhecer o que saiu das mãos ainda do artífice da escrita e o que foi objeto de alterações, reformulações e reinterpretações… Lembremo-nos do caso de «A Capital!», que foi dado à estampa postumamente com um título incorreto… Para não falar da intervenção pouco feliz (é o mínimo que pode dizer-se) de Ramalho Ortigão em «A Cidade e as Serras»… De qualquer modo, importa insistir no facto deste Dicionário de Eça dar-nos um bom panorama da obra e da época, permitindo-nos dizer que faz-se tantas vezes luz sobre a interação entre o autor e a sua riquíssima geração. E se nos lembrarmos da célebre fotografia tirada no velho Palácio de Cristal no Porto, com os cinco magníficos (a propósito da compra de um leque com cães para oferecer à noiva de José Maria – facilmente nos apercebemos que há como que uma hierarquia, que coloca no centro Antero de Quental, indiscutivelmente a figura tutelar e carismática da Geração. E a verdade é que, pelo motivo já referido, que levou Unamuno a falar de idade de ouro, devemos ainda referir a ironia trágica que leva a geração a passar à história como dos «Vencidos da Vida». Vencidos, mas vencedores – disseram alguns comentadores mais argutos, a quem o tempo veio a dar razão. De facto a expressão nasceu de uma conversa irónica entre Ramalho e Oliveira Martins sobre uns «Battus de la Vie» em França. Batidos significaria que tinham sido alvo de ataques de todo o tipo – desde que tinham promovido em meados dos anos oitenta um movimento de regeneração da Regeneração, a «Vida Nova»… O grupo jantante do Tavares e do Hotel Braganza (cuja crónica conhecemos em pormenor, graças à leitura do «Tempo», órgão de imprensa de Carlos Lobo de Ávila – hoje em linha na internet) acreditou que seria possível contrariar o fatalismo da decadência, através de medidas fundas e corajosas… Quando nos apercebemos de quem eram os onze «Vencidos, mas Vencedores», verificamos que a sua existência pressupunha o apoio do Rei D. Carlos, que não tinha condições para o efeito… A Ficalho, Sabugosa, Soveral e Arnoso, juntavam-se a Carlos de Lima Mayer, Lobo d’Ávila, Junqueiro, Ramalho, António Cândido e Oliveira Martins. De novo vinha à ideia a necessidade de encontrar soluções duráveis e patrióticas… Eça assume neste tempo uma atitude crítica, ciente de que havia evidente incapacidade para responder aos desafios – este o sentido da atitude de uma Geração que deixou a lição da não resignação…
Guilherme d’Oliveira Martins
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