O VALOR DA LIBERDADE
«Os Memoráveis» de Lídia Jorge leva-nos, no título, quase sem querermos, a Xenofonte, mas há algo que aproxima e algo que afasta a obra do clássico antigo, de um lado, os ideais e os princípios, de outro, as pessoas, os sentimentos e as tentações. A liberdade, afinal, quando entra na normalidade das coisas vai perdendo o fulgor. Péguy resumiu o tema de um modo emblemático: «tudo começa em mística e acaba em política». A história funciona pendularmente, e é esse movimento que a autora procura descobrir, sem se ater apenas a um começo e um fim… A apatia, o imobilismo e a indiferença levam ao acordar. E sente-se que esta escrita tem a ver com uma obrigação de despertar e de resistir… Não há nostalgia, como na decadência, mas sentimento melancólico, que obriga a agir, não retrospetivamente, mas olhando para diante. E lembramo-nos do que Lídia Jorge disse em «Contrato Sentimental» (Sextante Editora, 2009), partindo da alternância (sempre o pêndulo) entre o herói do mar e o lixo a que alguns desejariam votar-nos (estávamos no auge dos ratings das agências): «seria ridículo garantir, com base no passado, ou mesmo no presente, alguma coisa de seguro em relação à sobrevivência futura deste tipo de convivialidade amorosa entre os outros e o tuga, o tuga e os outros, sabendo que nós mesmos em breve seremos outros, e os outros também serão outros em contacto connosco, num mundo tão amplamente aberto, sobretudo quando os mitos de representação forem diferentes e as relações de poder se alterarem, a ritmos que não podemos prever». E aí, dizia a autora, em vez de processo de integração só há processo de educação. E que educação sentimental? Como afirmou Mário Mesquita na apresentação de «Os Memoráveis», no dia em que fomos despedir-nos de José Medeiros Ferreira, o que está verdadeiramente em causa neste livro e nesta reflexão é um espírito de resistência.
A PARTIR DE UMA FOTOGRAFIA
Numa fotografia em torno da qual vai girar o romance, tirada no «Memories», temos as personagens cujo percurso a romancista vai acompanhar e analisar: El Campeador, o Bronze, Charlie 8, Umbela, António Machado, Rosie Honoré, o cozinheiro Nunes, o Dr. Salamida, três militares barbudos, o casal de poetas Ingrid e Francisco Pontais, o fotógrafo Tião Dolores. Ana Maria Machado, repórter portuguesa em Washington, é convidada a fazer um documentário sobre a Revolução portuguesa de 1974. A «machadinha», filha de António Machado, e a equipa da CBS (Margarida Lota e Miguel Ângelo) vão encarregar-se, assim, da investigação sobre esses protagonistas: onde estavam? O que sentiram na altura? Que balanço fazem, passados os anos? Qual a melhor imagem de tudo o que aconteceu? Daqui tudo parte. Um acontecimento histórico não se resume a um momento, é uma evolução, um encontro de sinais contraditórios. E depois da fábula, vamos descobrir a «viagem ao coração da fábula», onde se desconstrói o estereótipo do embaixador americano e onde se vai descobrir a matéria de que se fazem as vidas: ressentimento, egoísmo, inveja, maledicência. E, mais importante do que descobrir quem cada um é, a verdade é que a autora vai compondo as personagens com elementos vários que os tornam recomposições da realidade, desaconselhando o exercício de tentar descobrir o rosto que está tapado pela máscara. Há situações evidentes e outras propositadamente menos claras, já que um romance tem de deformar a realidade para a tornar verosímil. Agustina ensinou-o sempre, magistralmente, sobretudo quando se lhe apontavam as aparentes contradições na narrativa. Lídia Jorge faz muito bem esse difícil exercício. «O que me interessou foi ver o tempo a correr, perceber o que ficou, surpreender a memória no momento em que deixou de ser necessária. Porque a memória tem em si a artimanha do esquecimento» (J.L., 5.3.14).
COMPREENDER A REALIDADE DE HOJE
«Os Memoráveis» ajudam-nos a compreender o Portugal de hoje. Com preocupações de agora, vemos que um acontecimento como o 25 de abril de 1974 não se resume a uma ocorrência pretérita, porque a liberdade e a democracia são presentes e sempre inacabadas. Eduardo Lourenço, de «Os Militares e o Poder» está presente quando diz que «a Revolução não veio pôr apenas em causa os mecanismos do poder civil nem as relações do poder militar e do poder civil, mas a própria ordem militar». No entanto, nesta novíssima psicanálise mítica do destino português, mostra-se, entre outras coisas, «que são as Forças Armadas que estão na Nação e não a Nação nas Forças Armadas», e é a partir daí que a história pendular deve continuar a ser acompanhada. Lídia Jorge tem, por outro lado, razão quando coloca «Os Memoráveis» ao lado do seu primeiro romance – «O Dia dos Prodígios» – tendo a sensação correta de o estar a atualizar. Sentimo-lo numa leitura atenta. De facto, vamos de um ato de fixar um tempo que desaparecia até à necessidade de «compreender um tempo que está para vir»… Eis o fio de Ariadne. As personagens de «Os Memoráveis» recriam o que foi a euforia revolucionária e a desilusão que sempre se segue a um período de entusiasmo, no caminho sempre difícil, de avanços e recuos, para a emancipação. E quando lemos, no final, o argumento do filme, compreendemos por que razão se diz: «É muito importante que o Bronze, antes de mais, diga o que disse – “Classifico-o como obra de um milagre, minha senhora. Milagre, sim. Sendo eu um agnóstico, até que gostaria de usar outro termo mais sereno, mas não encontro. E milagre porquê? Pela coincidência no tempo de factos inesperados. Olhai! Registem a minha opinião antes que seja tarde”. Por razões óbvias esta passagem deve ser incorporada na íntegra. Não encontro nenhuma outra declaração que melhor defina o espírito de “História Acordada” (…) Não nos interessa escurecer o que pode ficar claro. A nós só nos interessa recuperar a metralha de flores que o tempo deixou intacta». Estamos perante uma construção de quem? O Oficial de Bronze bem insiste: «Quem desenhou o plano e comandou as movimentações a partir da Pontinha? Nem eu, nem ele, nem nós, nem vós. Foram eles, os cinco mil». Por isso, alerta para as tentações dos vários cultos do eu («…já cada um queria ter uma estátua erguida…»). E confessa-nos: «Sou franco, eu também me envolvi, também disse demasiadas vezes eu»… E a viúva de Charlie 8 lembra que este sabia que cinco mil homens «estavam a fazer rodar as agulhas sobre o mostrador». Mas o Campeador não vai ter voz no filme, intencionalmente, porque a «figura do estratega deve ser poupada à fala. Sempre que um mito fala o seu barro arrefece». A capa do livro invoca El Cid, o Campeador, Don Rodrigo Diaz de Vivar, um cavalo à beira-mar, não altivo mas de cabeça baixa, figurando o velho mito histórico: «o meu corpo será cadáver e ainda há de ganhar batalhas»… É assim que Lídia Jorge, neste momento alto da sua obra, deixa a memória esbatida, forte e sem ilusões, de uma resistência e de uma esperança que não se desvanecem.
Guilherme d’Oliveira Martins