A Vida dos Livros

De 5 a 11 de outubro de 2015

Os itinerários de Frei Sebastião Manrique são de leitura fundamental, destacando-se a edição da «Breve Relação dos Reinos de Pegu, Arracão, Brama e dos Impérios Calaminhã, Siammon e Grão Mogol» (Cotovia, 1997).

A MAGIA DA VIAGEM
Todas as viagens são mágicas, mas algumas são-no especialmente. Falo de Sião e de Sirião, da Tailândia e de Mianmar, que atrairam os portugueses e onde o Centro Nacional de Cultura (CNC) realizou mais uma das jornadas do ciclo «Os Portugueses ao Encontro da Sua História». Fernão Mendes Pinto, sobre Sião, disse haver neste reino «muita pimenta, gengibre, canela, canfora, pedra-ume, canisfistula, tamarinho e cardamomo em muita grande quantidade de maneira que se pode dizer e afirmar com verdade (…) que é este um dos melhores reinos que há em todo o mundo»… O antiquíssimo reino de Sião é um dos marcos fundamentais das relações de Portugal com o Oriente. Depois da conquista de Malaca, em 1511, Afonso de Albuquerque cedo estabeleceu relações com o prestigioso reino, através de Duarte Fernandes, enviando depois um Embaixador a Ayuthia, António Miranda de Azevedo, que foi recebido pelo próprio rei de Sião, que lhe mostrou um magnífico elefante branco e o presenteou. Sabemos, segundo Martim Afonso de Melo e Castro, através de carta ao Rei de Portugal de 1565, que havia dois mil portugueses a viverem no Oriente, na China, Pegu, Bengala, Orissa e Sião, e um século depois, encontramos uma população portuguesa estabilizada no «bandel» (Bang Portuguet) de Ayuthia de cerca de duas mil almas, num termo que tinha sido concedido pelo Rei de Sião, onde havia livre prática religiosa e isenção de alguns tributos mercantis. A comunidade encetou um processo de miscigenação com siameses, chineses, peguanos e japoneses e os luso-descendentes exercem funções de intérpretes e de funcionários administrativos ao serviço do Rei. As comunidades portuguesa e japonesa da Ayuthia eram tão próximas que D. Maria Guiomar, uma luso-japonesa gozou de grande notoriedade, ao casar-se com o grego Cristóvão Falcão, que foi Primeiro-Ministro de Sião.

UM PÉRIPLO SURPREENDENTE
O périplo iniciou-se pelo antigo Sirião, por Rangum, a maior cidade de Mianmar, a ancestral «cidade sem inimigos», fundada a partir de uma aldeia de pescadores em torno do exuberante pagode de Schwedagon. Aí se celebrizou Filipe de Brito e Nicote (c. 1566-1613), português que chegou a ser proclamado rei do Pegu ou de Sirião (Thanlyin). Em 1590, encontramo-lo na região como comerciante de sal na ilha de Sundiva e depois ao serviço do rei de Arracão (hoje Rackine, cuja capital é Mrauk-u). Nesse complexo xadrez político, Filipe de Brito com Salvador Ribeiro de Sousa, cavaleiros-mercadores, intervieram vitoriosamente nos conflitos locais e o primeiro aconselhou o rei a construir uma casa de Alfândega para aumentar as rendas do comércio no Pegu. Não foi fácil ao português obter a influência que desejava, tendo conseguido, porém, chegar ao seu intento, depois de muitas vicissitudes, ódios e combates, o que lhe permitiu tomar Pegu e ser proclamado Rei, com forte apoio dos naturais, que lhe chamaram Changá, ou seja «Homem Bom»… Pelos serviços prestados, Filipe II concederia armas a Filipe de Brito e Nicote, designando-lhe como solar o próprio forte de Sirião… No entanto, em 1613, os birmaneses tomariam a praça e Filipe de Brito seria morto.

PEGU E AS SUAS RIQUEZAS
Pegu, zona de rios, era um dos grandes fornecedores de arroz e um centro de construção naval em que Malaca se abastecia de juncos de grande porte para a sua navegação comercial, sendo ainda entreposto para a saída do lacre, do almíscar, das pedrarias, bem como de todos os produtos da Alta Birmânia e de Sião do norte. Com forte influência budista, que suplantou largamente o hinduísmo, a zona tinha e tem muito diminuta presença muçulmana, o que levou Afonso de Albuquerque a delinear um plano de aliança após a conquista de Malaca, enviando a Pegu Rui Nunes para acertar a paz e o entendimento com o governo desses povos. O grupo do CNC ficou instalado no Strand Hotel, um dos míticos hotéis do Império inglês, onde estiveram Kipling, Maugham e Orwell, a recordar a antiga nostalgia britânica.

SOLDADOS, MERCADORES E MISSIONÁRIOS
Graças à explicação de Luís Filipe Thomaz compreendem-se bem as três dimensões da presença portuguesa na Ásia – o Império, os mercadores e os mercenários. A política oficial, a definição estratégica militar e administrativa, aliada à ação dos mercadores, sobretudo no litoral, exercendo comércio asiático, permitiram, pela miscigenação, a criação de uma rede de luso-descendentes ativos, acrescendo as aventuras incertas dos mercenários no continente, com resultados díspares. No caso de Sirião, temos um pouco de tudo: o interesse inicial de Albuquerque em ter alianças com os gentios budistas teravadas, o intenso comércio estabelecido com Malaca e a aventura mercenária de Brito e Nicote e outros. O Forte e a Igreja de Santiago marcam a presença portuguesa. A antiga fortaleza de Sirião (Thanlyin) é uma recordação. Segundo as descrições que chegaram até nós tinha quatro portas, segundo os pontos cardeais, com muros sólidos, torres de observação, guaritas e um fosso circundante. A comunidade de portugueses misturados com gente da terra construiu duas igrejas cristãs e o papiar era a língua franca do comércio e da catequese. O que resta da Igreja que ainda pode ser vista é de construção italiana em tijolo, e data de meados do século XVIII, correspondendo não à iniciativa portuguesa do Padroado do Oriente, mas à ação romana da Propaganda Fide (com superintendência do Padre Paolo Maria Nerini), pelos missionários barbanitas. O certo, porém, é que a igreja de Santiago serviu os luso-descendentes e é referida como dos portugueses.

UM MISSIONÁRIO VIAJANTE
Camões é lembrado no destino depois de Rangum: «Olha o reino Arracão; olha o assento / De Pegu, que já monstros povoaram» (Canto X). E Tomé Pires na «Suma Oriental» fala-nos do reino que fica entre Bengala e Pegu. Arracão foi lugar que atraiu os mercenários portugueses. António Bocarro diz que «vendiam por grandes preços recebendo tudo em ouro de que muitos ficaram ricos e se vendia de sorte que se pesava de uma parte arroz e da outra ouro». Data do século XV a elevação da cidade de Mrauk-U a grande capital do último e poderoso reino de Arracão unificado. As relações comerciais desenvolveram-se com a Pérsia, Índia, Arábia, Pegu, Portugal e Países Baixos. Aqui se estabeleceu a importante comunidade de luso-descendentes no Bairro de Daingrih-pet, que vem descrito com pormenor pelos viajantes do século XVII e XVIII. Os reis de Arracão (Rackine) encontravam nessa localidade os melhores artilheiros e marinheiros, cabendo aos mercadores o intenso comércio do arroz, do algodão, do marfim, dos cauris, dos rubis, das especiarias, dos cavalos e dos elefantes. A referência portuguesa aqui é Sebastião Manrique (1590-1669), autor do célebre «Itinerário das Missões da Índia Oriental» (1649), monge agostinho português que partiu para Goa e Cochim, donde saiu para Ugulim (Bengala) e para Arracão. E foi aí que recebeu do Rei Sirisudhammaraja terreno para construir o templo cristão para estabelecer a comunidade portuguesa, com liberdade de culto.

Nota. – Frei Sebastião Manrique, natural da cidade do Porto, professou na congregação dos Agostinhos em Goa no ano de 1604; foi mandado por Frei Luís Coutinho, provincial da Índia (1628) às missões de Bengala, em cujo ministério esteve treze anos; regressou a Roma por terra, onde foi eleito definidor geral, e Procurador-Geral da província de Portugal. A Cúria de Roma transferiu-o para Londres em 1669, em cuja viagem um seu criado o matou. As investigações modernas provam a veracidade do texto antigo e confirmam a fama da literatura de viagens portuguesa.

Guilherme d’Oliveira Martins

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